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Alheira: a história deste enchido português e onde prová-lo em Lisboa

a tray of hot dogs on a grill

 

Portugal tem uma variada e apetitosa gama de enchidos. Entre a morcela, o chouriço e outras criações à base de ossos e cartilagens de porco, como o butelo, encontramos a alheira, que é sem dúvida o enchido português com uma origem mais conturbada.

A maioria dos enchidos, sejam eles de porco ou feitos com outras carnes, tanto em Portugal como noutras partes do mundo, derivam da mentalidade de baixo desperdício que a escassez tem ditado ao longo da história. Antes da invenção da refrigeração, abater um animal grande, como um porco, significava ter quantidades de comida maiores do que aquelas que se consegue consumir antes que a carne fresca se estragasse. Por isso, começava-se por preparar pratos com o sangue fresco que se aguentava menos (como as papas de sarrabulho), e depois enfiava-se a carne, a gordura e os temperos em tripas de porco, que eram curadas e fumadas para durarem praticamente até ao próximo abate. Tradicionalmente, estaríamos a falar de algo que acontecia uma vez por ano, antes do início do inverno.

 

Como a pressão da Inquisição e o engenho judaico deram origem à alheira

 

Embora a liberdade de escolher a própria fé seja uma realidade garantida no Portugal de hoje, nem sempre foi assim. Há cerca de 500 anos, nos tempos da Inquisição, o governo aliado à igreja começou a impor a religião cristã às massas, num país onde havia algumas minorias religiosas, nomeadamente os judeus. Curiosamente, a Inquisição teve início em Espanha em 1492, durante o reinado de Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Foi então que os mouros (que também tiveram um enorme impacto nos hábitos alimentares da Península Ibérica) foram finalmente expulsos do território espanhol, dando início a um período de fervor religioso. Uma vez que os muçulmanos não deveriam mais coexistir com outras religiões na região, estava na hora das potências católicas se expressarem e imporem mais do que nunca. Foi então que a Inquisição começou a forçar os judeus a converterem-se ao cristianismo, o que levou um número considerável de famílias judias a fugir pela fronteira para Portugal, onde poderiam permanecer fiéis à sua fé e viver em paz. Mas, infelizmente, essa tranquilidade também não durou muito.

 

a painting of a person

 

Em pouco tempo, Portugal seguiu os passos de Espanha e os judeus que agora viviam em Portugal receberam um ultimato: poderiam converter-se ao cristianismo ou partir. As estatísticas da época diriam que a maioria dos judeus se converteu, mas o que aconteceu na realidade é que uma tremenda dose de engenhosidade foi usada para fazer o mundo acreditar que realmente tinha sido assim, enquanto permaneceram judeus tanto em termos de crenças como de práticas do dia a dia, pelo menos porta adentro.

As alheiras surgiram nessa altura, pois os “antigos” judeus (agora chamados de cristãos-novos) ansiavam por mostrar que tinham finalmente abraçado os hábitos alimentares que outros cristãos também seguiam. Por exemplo, isso incluía comer carne de porco, algo que as leis kosher do judaísmo proíbem. Assim inventaram um enchido que se pareceria com qualquer outro, normalmente feito com carne suína, mas que na verdade não continha nenhum ingrediente terefá, ou seja, alimentos tidos como impróprios para o judaísmo. Como os enchidos eram tradicionalmente preparados em casa e pendurados à lareira (fumeiro) para curar entre vários dias a várias semanas, os judeus começaram a preparar alheiras que faziam qualquer um que viesse a casa, desde simples vizinhos a verdadeiros interrogadores, acreditar que se tinham efetivamente convertido ao cristianismo, pois (teoricamente) agora já comiam carne de porco.

Na realidade, as alheiras continham carnes de caça de pequeno porte (como a lebre) e aves domésticas, formatadas à semelhança dos enchidos tradicionais com a ajuda de pão, alho e outros temperos.

a large pile of bananas

 

Hoje em dia, quando se compra uma alheira, esta pode ser preparada de forma semelhante às originais ou pode conter mesmo carne de porco – algo que teria sido tão chocante para os judeus cujas vidas foram poupadas graças a deliciosas invenções como as alheiras há cerca de cinco séculos! Para comer alheira sem carne de porco, deve procurar alheira de caça, que geralmente contém várias carnes como as de pato, frango, coelho e javali. As alheiras padrão (principalmente se não houver explicação) provavelmente hão-de conter carne de porco ou, pelo menos, gordura do mesmo.

Como as perseguições religiosas durante o tempo da Inquisição começaram principalmente em torno da capital, aqueles que queriam preservar a sua identidade religiosa deslocaram-se primeiro para o interior de Portugal, nomeadamente para as regiões da Beira Interior e todo o norte até Trás-os-Montes, uma área do país que historicamente esteve bastante afastada do resto do território nacional devido ao seu relevo montanhoso acidentado de difícil acesso. Devido à concentração de judeus nesta parte de Portugal, a gastronomia transmontana está muito relacionada com o uso de alheiras. Tanto é assim que muitas vezes nos referimos a este enchido como alheira de Mirandela, da vila com o mesmo nome, que hoje tem o estatuto de Indicação Geográfica Protegida IGP e foi eleita pelos portugueses como uma das Sete Maravilhas da Gastronomia Portuguesa. Embora muitos argumentem que não são realmente deste local específico, esta região de Portugal é de fato famosa devido aos seus enchidos de alta qualidade preparados de acordo com métodos artesanais, algo que pode saborear se visitar a Feira do Fumeiro de Vinhais, que é um dos melhores festivais gastronómicos de Portugal que acontecem cada ano.

 

a close up of food on a plate

 

Desde a sua criação, há cerca de 500 anos até hoje, a alheira mudou de kosher para, por vezes, conter carne de porco e ou mesmo bacalhau numa versão de mar. E, em anos mais recentes, pode até encontrar no mercado alheiras à base de plantas – como a que vemos nesta imagem. Sendo este o tipo de enchido que gostamos de comer sozinho mas que também usamos muito para realçar o sabor de outros pratos (como estufados com leguminosas, pratos de ovos, empadas e muito mais) é um daqueles sabores nostálgicos genuinamente portugueses que ninguém quer perder, nem mesmo os veganos.

 

a donut sitting on top of a wooden table

 

 

As mais típicas receitas portuguesas com alheira

 

Quando se come alheira, uma das primeiras coisas a ter em conta é que não terá a textura típica que se espera de um enchido normal à base de carne. As alheiras são moles, muito parecidas com a kishka judaica, um tipo de enchido kosher preparado com carne e farinha que se come tradicionalmente no sabá, e que também faz lembrar a farinheira portuguesa, outro tipo de enchido que surgiu à semelhança da alheira, neste caso com farinha real como aglutinante versus pão amolecido.

 

Alheira grelhada

a plate of food on a tableA forma mais simples de comer alheira seria grelhada ou frita. Os puristas diriam que não se frita alheira, que já é bastante gordurosa por si só. Se isso é verdade, também é um facto que a pele da alheira tende a rebentar em contacto com o calor, libertando assim gordura durante a cozedura – aguarde um pouco e é provável que a alheira acabe por fritar na sua própria gordura. Se não se preocupa em contar calorias e gostaria de experimentar a alheira na sua forma mais indulgente, peça alheira com ovo e batatas, ou seja, uma alheira inteira, servida com um ovo estrelado por cima (como muitas vezes fazemos quando comemos bife), batatas fritas e, talvez (só mesmo talvez), uma pequena salada. A alheira de caça (aquela que não contém carne de porco) é muitas vezes servida com grelos salteados e, para equilibrar a alheira que é bem forte, batatas cozidas em vez de fritas.

 

Ovos mexidos com alheira

a bowl of food on a table​​Em Portugal, os ovos mexidos são considerados um aperitivo ou petisco, e não um prato de pequeno-almoço. Principalmente quando se enriquecem os ovos com alheira! As alheiras têm um sabor de carne tão forte que são ótimas para adicionar profundidade de sabor a preparações simples, como ovos. Os ovos mexidos com farinheira são também bastante comuns nas tabernas de todo o país, sendo habitualmente consumidos a par de outros petiscos ou, no mínimo, com pão.

 

 

 

Croquetes de alheira 

a close up of a person holding a piece of cakeQuem não gosta de um bom salgadinho frito? A gama de salgados típicos portugueses inclui croquetes de alheira, por vezes também conhecidos como bolinhas de alheira, feitos com esmagada de alheira e outros ingredientes para dar liga, antes de serem panados e fritos. Estas bombas de sabor são uma deliciosa forma de abrir o apetite antes de um prato principal.

 

 

 

 

Onde comer alheira em Lisboa

 

A alheira grelhada (feita com carne de porco ou uma mistura de carnes de aves e caça, ou seja, alheira de caça) é o tipo de comida que se encontra facilmente numa típica tasca portuguesa. Cada vez mais vai também ver por aí petiscos como os croquetes de carne aromatizados com alheira, ou mesmo mexidos, mas para estes provavelmente terá de visitar estabelecimentos mais específicos.

Deixamos aqui algumas sugestões:

 

Salsa & Coentros

Para comer alheira com batatas fritas

📍Rua Cel. Marques Leitão 12, 1700-337 Lisboa

https://restaurantesalsaecoentros.pt

 

Tasquinha do Lagarto

Prove a alheira de caça grelhada

📍Rua de Campolide 258, Lisboa

www.facebook.com/tasquinhadolagarto

 

Da Prata 52

Petisque uns croquetes de alheira

📍Rua da Prata 52, 1100-150 Lisboa

www.instagram.com/daprata52

 

Tapisco

Prove os ovos mexidos com alheira (aqui fotografados)

📍​​Rua Dom Pedro V 81, 1250-096 Lisboa

www.tapisco.pt

 

Lovecraft Gastropub

As bolinhas de alheira com puré de pêra são uma entrada irresistível

📍​​Rua da Boavista 28, 1200-067 Lisboa

www.instagram.com/lovecraftportugal

 

Kong – Food Made With Compassion

Neste restaurante vegano, servem croquetes de alheira vegetal

📍​​Rua do Crucifixo 30, 1100-183 Lisboa

www.instagram.com/kongveganfood

 

a plate of food on a table

 

Parece-lhe super interessante como novos alimentos surgem graças a diferentes contextos históricos e sociais? Este é o tipo de informação que partilhamos durante as nossas experiências gastronómicas e culturais em Lisboa, assim como através de publicações frequentes no Instagram. Siga a #tasteoflisboa e partilhe os seus post connosco: @tasteoflisboa

 

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