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Os melhores pratos de milho em Portugal (e onde prová-los em Lisboa)

Bowl of polenta with clams, diced bacon, and herbs on a red plate.

 

O milho não é originário de Portugal, mas faz parte da alimentação nacional há tanto tempo que já se tornou um sólido elemento da nossa identidade culinária.

Quando os navegadores portugueses ficaram a conhecer o milho nas Américas, no início do século XVI, rapidamente reconheceram o seu potencial. Ao contrário das especiarias ou do cacau, destinados às elites, o milho era prático, pois tinha altos rendimentos, saciava e podia servir de alimento tanto pessoas como gado. Já na segunda metade do século XVI cultivava-se nas regiões do Minho e do Douro, onde era chamado de milho grosso, para o distinguir do milho miúdo, ou seja, o milho painço, que se cultivava há séculos.

O clima do Norte de Portugal era perfeito para o cultivo do milho. Onde o trigo falhava, o milho prosperava, dando mais grão por hectare e fornecendo forragem para os animais. Depressa o seu cultivo se espalhou para a região das Beiras, chegou a Trás-os-Montes e ao Algarve, onde o milho branco se tornou a base do xerém. Daí seguiu para as ilhas da Madeira e dos Açores, onde foi rapidamente integrado na dieta local.

Imagem da capa TeleCulinária

 

Five people in hats threshing corn outdoors on a sunny day.Imagem cortesia de Fototeca Municipal de Lagos

 

Durante séculos, o pão de trigo foi um símbolo de riqueza, enquanto a broa de milho, densa, escura e que enchia, era o pão das classes trabalhadoras, que se reuniam nos fornos comunitários para cozer os seus próprios pães.

Mas a relação entre Portugal e o milho nem sempre foi linear. No século XVIII, começaram a ser registados casos de pelagra, uma doença causada pela deficiência de niacina, em zonas rurais cuja alimentação dependia quase exclusivamente do milho. O problema estava na forma como o cereal era preparado. Na América Central, onde o milho era consumido há milénios, usava-se a nixtamalização (ainda hoje em prática), um processo que consiste em demolhar e cozer o milho numa solução alcalina, normalmente água de cal, tornando a niacina do grão biodisponível. Em Portugal este método era desconhecido e o milho era apenas moído e cozinhado a partir da farinha ou sêmola. Sem nixtamalização, o grão perdia parte do seu valor nutricional e, quando consumido isoladamente, podia levar à desnutrição. Os médicos alertavam contra o consumo excessivo, mas para as comunidades pobres o milho era barato e saciante. Para gerações de camponeses e pescadores, uma fatia de broa com sopa ou queijo significava encher minimamente o estômago e garantir mais um dia de sobrevivência.

 

Vintage poster of woman with wheat stalks and shield, promoting Campanha Nacional do Trigo.Imagem cortesia de Restos de Colecção

 

O século XX trouxe outra viragem. Durante a ditadura do Estado Novo de Salazar (1933-1974), a política agrícola virou-se fortemente para o trigo. O trigo era politicamente útil porque simbolizava modernidade, progresso e autossuficiência, e o regime lançou campanhas como a Campanha do Trigo para incentivar a sua produção, sobretudo no Alentejo. O milho, associado à pobreza e ao Norte, foi colocado de lado. A broa passou a ser estigmatizada como “o pão dos pobres”, enquanto o pão branco de trigo era promovido como o ideal nacional. Esta preferência oficial alterou hábitos de consumo, sobretudo nas cidades, e marginalizou tradições ligadas ao milho que tinham sido centrais durante séculos.

Ainda assim, o milho nunca desapareceu. Nas aldeias continuou-se a cozer broa, a preparar papas e a confecionar milho frito, mantendo vivas estas tradições em cozinhas familiares e festas locais. Após a Revolução de 1974, Portugal foi gradualmente recuperando a diversidade regional e o milho voltou a ganhar valor cultural como parte do património gastronómico do país.

Hoje, embora Portugal produza menos milho do que alguns vizinhos europeus e dependa em grande medida da importação, os pratos feitos à base de milho continuam a ser emblemáticos. Até o folclore conserva a sua importância, com provérbios como “Quem semeia milho, colhe pão”.

Se vier a Portugal, esperamos que possa provar alguns dos pratos de milho mais populares da nossa gastronomia que listamos mais abaixo.

 

Pães de milho de várias regiões de Portugal

Broa de milho 

 

Round, cracked loaf of bread with a thick slice cut on a wooden surface.Imagem cortesia de Gleba no VendusGO!

 

A broa de milho é talvez o produto de milho mais emblemático de Portugal. É o pão rústico do Norte, cozido há séculos no Minho, Douro e Beiras, onde o cultivo do milho prosperou desde a sua chegada das Américas. Ao contrário do pão de trigo, historicamente associado à riqueza, ou do pão de centeio, visto como mais pesado e agreste, a broa tornou-se o pão do dia a dia das famílias rurais.

Este pão é denso, com uma crosta gretada e aroma terroso, e raramente é feito apenas de milho. Como o milho não tem glúten, os padeiros costumam misturá-lo com centeio ou trigo para dar estrutura e elasticidade à massa. Um passo distinto diferencia a broa: a farinha de milho é escaldada com água a ferver antes de ser misturada com as outras farinhas, uma técnica que amacia o grão grosso e confere ao miolo a sua textura húmida e quase elástica. É um pão pensado para ensopar no caldo verde, desfazer em migas de broa (ver abaixo) ou formar uma crosta dourada sobre o bacalhau com broa.

No Minho, as broas costumam ser mais pequenas e escuras, frequentemente com maior proporção de centeio, enquanto nas Beiras podem ser mais claras, às vezes com mais trigo. Nos Açores existe também uma versão própria, o pão de milho. Embora partilhe o nome, não é o mesmo pão, já que nas ilhas o miolo é mais macio e a massa mais leve, recorrendo mais à farinha de trigo do que ao milho propriamente dito.

Quanto a qual é a melhor broa de milho, as opiniões são profundamente regionais. O Minho é frequentemente apontado como o coração da broa, com aldeias onde as técnicas de cozedura passam de geração em geração. Nas Beiras, sobretudo em torno de Coimbra e Viseu, a broa é igualmente apreciada, muitas vezes a acompanhar guisados e assados. Mesmo em Trás-os-Montes, onde o centeio é mais comum, a broa de milho continua a ser parte da identidade local. Já em Lisboa, encontra-se facilmente broa em supermercados, mas para provar uma com crosta bem estaladiça vale a pena ir a uma das melhores padarias de fermentação lenta, como a Gleba (com várias lojas na cidade) ou, se quiser provar aquela que talvez seja mesmo a melhor broa de Lisboa, ir até a Manteigaria Silva (Rua D. Antão de Almada 1 C) e pedir a broa de forno a lenha que costumam trazer de um pequeno padeiro independente de fora da cidade.

 

Broa de Avintes

 

Basket of sliced brown bread with a whole loaf on cloth.Imagem cortesia de Radio Metropolitana Porto

 

Se a broa de milho é o pão rústico quotidiano do Norte, a broa de Avintes é a sua prima mais escura e complexa. Recebeu o nome da vila de Avintes, junto a Vila Nova de Gaia, e está há muito ligada à identidade dessa comunidade.

Ao contrário da broa comum, que combina milho com centeio ou trigo, a broa de Avintes aposta sobretudo na mistura de milho e centeio, resultando num pão denso, húmido e com um sabor quase maltado. Tradicionalmente, também se adicionava malte à massa, intensificando a doçura e escurecendo o miolo. O processo é lento, sendo que a massa fermenta gradualmente e os pães são cozidos durante horas (por vezes mesmo durante a noite inteira) no calor residual dos fornos a lenha. O resultado é um pão pesado e aromático, tão saciante que uma fatia basta por si só, embora combine lindamente com enchidos, queijos fortes ou simplesmente com um fio de bom azeite.

Em Avintes, os padeiros continuam a proteger a tradição, e o pão ainda se vende em padarias icónicas como a Padaria Ribeiro de Avintes e a Broa de Avintes D. Maria Cristina, garantindo autenticidade a quem faz a peregrinação até à sua terra natal. Mas em Lisboa já não é preciso viajar até ao Norte para provar uma verdadeira broa de Avintes. A padaria Massa Mãe, no bairro de Benfica (Estr. de Benfica 232 A/B), mói o seu próprio grão dentro da loja e produz uma versão excecional deste pão, algo raro na capital.

 

Bolo da sertã 

 

Close-up of a round, flat cornbread on a wooden surface.Imagem cortesia de byAçores

 

Nos Açores, o milho também entrou no pão do dia a dia, mas numa forma muito diferente das broas densas do continente. O bolo da sertã é um pão simples, feito com farinha de milho e cozinhado diretamente numa sertã, a chapa de ferro colocada sobre o fogo. As suas origens são humildes, resultado da necessidade das famílias rurais que nem sempre tinham acesso a fornos, mas conseguiam ainda assim fazer pão fresco com utensílios e ingredientes básicos.

A textura é mais compacta do que a do pão de trigo, mas menos densa do que a broa de milho, com uma leve resistência ao trincar e um sabor rústico que reflete a simplicidade do grão. Cada bolo é moldado em formato redondo e achatado, sendo depois cozinhado na superfície quente até ficar dourado, ganhando uma crosta estaladiça por fora e mantendo-se macio por dentro. Tradicionalmente era feito em pequenas quantidades e comido no próprio dia, servido com sopas, guisados ou simplesmente com queijo fresco.

O bolo da sertã encontra-se sobretudo em cozinhas familiares nas ilhas de São Miguel, do Pico, da Terceira e do Faial, embora seja conhecido em todo o arquipélago. Não é um pão que normalmente se vê à venda nas padarias de Lisboa, já que continua ligado ao ambiente caseiro açoriano e a pequenas tascas locais. Quem quiser prová-lo deve procurar restaurantes de aldeia ou adegas familiares nos Açores, onde ainda é servido a acompanhar pratos típicos da região.

Para quem não possa viajar, o bolo da sertã é um dos pães de milho portugueses mais fáceis de recriar em casa. A base é simples: cerca de duas chávenas de farinha de milho fina, uma pitada de sal e apenas a quantidade necessária de água a ferver para escaldar a farinha até formar uma pasta espessa. Depois de arrefecer um pouco, junta-se um punhado de farinha de trigo para dar elasticidade, juntamente com um fio de azeite para manter a massa húmida. Moldam-se bolos redondos e achatados, do tamanho de um prato pequeno e com cerca de um dedo de espessura. Cozinham-se lentamente numa sertã ou frigideira de ferro bem quente, virando uma vez, até ambos os lados ficarem dourados e o interior estar cozido. Servidos mornos, com manteiga ou queijo fresco, captam da melhor forma o sabor rústico mas delicioso dos Açores.

 

Pratos portugueses à base de milho

Milho frito 

 

A tray of golden-brown fried tofu cubes.Imagem cortesia de Ruralea

 

Na Madeira, o milho ganhou terreno cedo após a sua chegada das Américas no século XVI. O clima ameno e húmido da ilha revelou-se ideal para o cultivo e rapidamente se tornou uma das culturas mais importantes, tanto para consumo humano como para alimentação animal. As famílias dependiam dele para preparar papas de milho, económicas e saciantes, que eram a refeição quotidiana das casas rurais, comidas simples ou com os legumes que houvesse disponíveis. Foi a partir dessa base humilde que surgiu o milho frito, a versão frita que viria a tornar-se uma das receitas mais conhecidas da Madeira.

O processo é bem simples, mas o resultado é delicioso. A farinha de milho é cozida lentamente com água, alho, azeite e muitas vezes couve finamente cortada até engrossar e formar uma papa firme. Depois de arrefecer, corta-se em cubos ou retângulos que se fritam até ficarem crocantes por fora e macios por dentro. O contraste de texturas é irresistível e acompanha na perfeição carnes grelhadas ou peixe frito. É por isso que o milho frito é inseparável de outro clássico madeirense, a espetada, que consiste em carne de vaca assada em espetos de louro sobre brasas. A combinação da carne suculenta com os cubos dourados de milho frito é muito apreciada tanto por locais como por viajantes que visitam a Madeira.

Existe ainda um primo mais simples, o milho cozido, que consiste na mesma papa de milho servida tal qual, sem fritar. Esta versão, hoje raramente vista em restaurantes, sobrevive sobretudo em lares madeirenses como comida de conforto.

Na Madeira é difícil não se cruzar com o milho frito, e por que haveria de ser diferente? É servido em praticamente todos os restaurantes tradicionais, em porções generosas. No continente, porém, é preciso procurar um pouco mais. Em Lisboa, restaurantes madeirenses como o Ilha da Madeira (Rua Campo de Ourique 33) servem-no como acompanhamento de pratos típicos da ilha. Também se encontra em ambientes mais informais, como alguns bares dedicados à poncha (a bebida espirituosa da cana de açúcar), incluindo o popular Madeira Pura (Rua do Terreiro do Trigo 72), em Alfama, onde os cubos de milho frito são servidos como petisco, perfeito para acompanhar as bebidas.

 

Xerém 

 

Creamy pasta with clams in a bowl on a wooden board, garnished with herbs.Imagem cortesia de Teleculinária

 

No Algarve, o milho dá forma ao xerém, também conhecido como xarém, uma papa salgada que se tornou um dos pratos mais emblemáticos da região. O xerém é basicamente preparado ao cozer lentamente farinha de milho branca finamente moída até formar uma base espessa e consistente, à qual se juntam depois marisco, carne ou legumes. As versões mais conhecidas incluem o xerém de amêijoas ou de conquilhas. Os bivalves são primeiro cozidos à parte e o seu caldo é usado para preparar a papa, conferindo-lhe a profundidade do sabor a mar. Só quando a base está pronta se voltam a juntar as amêijoas ou conquilhas, juntamente com alho, cebola, azeite e, por vezes, um pouco de vinho branco, criando um prato que captura na perfeição o gosto do mar.

As origens do xerém refletem um cruzamento de tradições culinárias. Embora o milho só tenha chegado a Portugal no século XVI, a técnica de transformar cereais em papas já existia. O Algarve, com séculos de presença mourisca e depois influências do Mediterrâneo, tinha já no seu repertório diferentes papas de cereais. A farinha de milho integrou-se naturalmente na cozinha local, dando origem a algo que lembra de longe o cuscuz do Norte de África ou a polenta italiana, mas com sotaque claramente português. O prato foi rapidamente adotado pelas comunidades piscatórias, que o preparavam com o marisco e a carne de porco que tinham à disposição.

Embora mais associado ao Algarve, o xerém viajou além fronteiras. As migrações portuguesas e as ligações coloniais levaram o prato até Cabo Verde e Moçambique, onde se fundiu com as tradições locais, e até ao Nordeste do Brasil, onde ainda hoje existem versões conhecidas como xerém ou xerém nordestino.

Dentro do Algarve há muitas variações. Além do popular xerém de amêijoas ou de conquilhas, existe o xerém de bivalves, que mistura várias espécies juntas. Nas aldeias do interior fazem-se versões com carne de porco, como o xerém com entrecosto ou com enchidos locais, enquanto algumas famílias preparam uma versão vegetariana mais simples, com couve ou ervas aromáticas selvagens. Também a textura varia, sendo que em algumas cozinhas é batido até ficar cremoso e suave, e noutras mantém-se mais grosso e granuloso, mais próximo da polenta.

Em Lisboa, quem quiser provar xerém pode visitar a Taberna Albricoque (Rua dos Caminhos de Ferro 98), restaurante inspirado no Algarve do chef Bertílio Gomes, que o inclui ocasionalmente no menu.

 

Papas de sarrabulho

 

Clay pot of brown stew with a lemon slice, served with roasted vegetables on the side.Photo by Taste Braga

 

Poucos pratos ilustram melhor a filosofia de aproveitar tudo da cozinha do Norte do que as papas de sarrabulho. Tradicionalmente preparadas no inverno, aquando da matança do porco, aproveitam o sangue cozido em caldo, especiarias e uma mistura de elementos espessantes como pão, arroz ou farinha de milho, resultando numa papa escura e aveludada.

Na forma mais comum atualmente, especialmente no Minho, o sarrabulho recorre sobretudo ao arroz para dar corpo, sendo assim chamado de arroz de sarrabulho. Mas receitas mais antigas, sobretudo em aldeias pequenas, usavam farinha de milho. O milho dava uma textura mais pesada e terrosa e tornava a papa ainda mais saciante, o que era essencial em comunidades onde a comida tinha de sustentar longas jornadas de trabalho agrícola. Esta variação ainda existe, embora as papas de sarrabulho sejam menos frequentes nos restaurantes do que o arroz de sarrabulho.

As origens do prato são práticas, pois nada do porco abatido se desperdiçava, e o sangue, rico em nutrientes, tornava-se uma base natural para papas reconfortantes. Especiarias como a canela e o cravinho eram acrescentadas para suavizar o sabor intenso, e a farinha de milho reforçava a substância quando o arroz era caro ou escasso.

Hoje, quando servidas em restaurantes, as papas de sarrabulho acompanham muitas vezes carnes assadas, em particular os rojões, que são pedaços de carne de porco marinado frito. Embora alguns possam torcer o nariz à ideia de comer sangue, no Norte de Portugal o prato continua a ser celebrado como tradição de peso. É um daqueles pratos que vale a pena provar no inverno, viajando até ao Minho, mas, se isso não for possível, pode ser que venha a ter sorte em Lisboa em tascas como O Luís (Rua José Duro 29).

 

Migas de broa com couve | cornbread mash with greens

 

Dish of cooked greens and beans in a black pan on a red checkered cloth.Imagem cortesia de O Meu Tempero by Carla Sousa

 

As migas de broa com couve são uma forma de dar nova vida à broa de milho endurecida. O pão é esfarelado, misturado com couve galega ou couve portuguesa salteada, alho e azeite, e por vezes enriquecido com gordura de porco ou com os molhos de um assado (embora versões totalmente vegetarianas sejam igualmente possíveis e cheias de sabor). O resultado é um prato económico mas muito satisfatório, com uma textura granulosa que lembra o recheio usado em carnes como o peru noutras partes do mundo.

As origens das migas remetem para uma tradição ibérica mais ampla de reaproveitamento de pão. Em Portugal existem inúmeras variações de migas, muitas vezes associadas ao trigo no Alentejo e ao pão de milho nas Beiras e no Norte. O que distingue a versão de milho é a sua base densa e rústica, que absorve sabores de forma notável. Historicamente, era a resposta ao problema do que fazer com a broa dura, já que desperdiçar comida não era opção, e estas migalhas tornavam-se o alicerce de um novo prato em vez de irem para o lixo.

Em alguns lugares, as migas de broa evoluíram como acompanhamentos festivos, sobretudo de pratos de porco. As carnes assadas da matança de inverno eram muitas vezes servidas com estas migas, transformando o que começou como economia de recursos numa refeição celebratória.

O bacalhau com broa também faz excelente uso do miolo de pão de milho. Em vez de misturadas na frigideira, nessa receita a broa é esfarelada, temperada com alho, ervas e bastante azeite, depois espalhada sobre o bacalhau e levada ao forno até formar uma crosta dourada e crocante que contrasta na perfeição com as lascas macias do peixe.

 

Doces portugueses com milho

Papas de carolo

 

A spoon with pudding on a plate, bowl with cinnamon pudding in background.Imagem cortesia de Ingredientes

 

Nas Beiras, uma das formas mais tradicionais de saborear o milho é em papas de carolo, uma papa doce preparada com grão de milho partido. A palavra carolo refere-se ao milho partido em grãos mais grossos do que a farinha comum, o que dá ao prato uma textura ligeiramente granulosa. Cozido lentamente com leite, açúcar, casca de limão e pau de canela, transforma-se numa sobremesa simples mas reconfortante, muitas vezes servida quente e polvilhada com canela em pó.

Antigamente, nas casas que cultivavam e moíam o próprio milho, nada se desperdiçava. O carolo era o subproduto da moagem e transformá-lo em papas doces era uma forma de dar nova vida a um ingrediente pouco nobre, criando algo apetitoso, sobretudo para as crianças. O prato tornou-se tão enraizado na cultura gastronómica das Beiras que surgiu a Confraria dos Carolos e Papas de Milho, fundada para salvaguardar a tradição e promover a sua continuidade. Em Portugal, as confrarias são irmandades gastronómicas que reúnem entusiastas e profissionais em torno de um produto ou prato específico, para garantir a sua preservação e visibilidade. O facto de existir uma confraria dedicada apenas ao carolo e às papas de milho mostra bem a importância desta receita humilde para a identidade local.

As papas de carolo ligam-se ainda a uma família mais ampla de papas doces de milho que se encontram em várias regiões do país. Existem variações conhecidas como papas doces de milho, feitas com farinha mais fina e muitas vezes enriquecidas com manteiga ou gemas. Na Madeira e nos Açores, surgem versões semelhantes nas mesas festivas, aromatizadas com especiarias e por vezes passas.

Embora hoje em dia raramente apareçam em ementas de restaurantes, as papas de carolo continuam vivas em algumas cozinhas familiares do interior. Para quem tiver curiosidade em experimentá-las, a preparação é simples: coza milho partido em leite com uma pitada de sal e uma tira de casca de limão, mexendo frequentemente até os grãos amaciarem e a mistura engrossar. No final, adicione açúcar a gosto, tal como faria com as papas de aveia, e sirva quente, polvilhado com canela.

 

Bolo de tacho de Monchique 

 

Round chocolate cake on a wooden board with a cracked surface.Imagem cortesia de Algarve Marafado

 

No Algarve, e em particular na vila serrana de Monchique, o milho assume uma expressão doce no bolo de tacho, um bolo denso e aromatizado com especiarias cuja história remonta a séculos. Era tradicionalmente misturado e cozido no próprio tacho, o que lhe deu o nome. A forma variava conforme o recipiente, mas o resultado era sempre o mesmo, um bolo compacto e escuro.

Ao contrário dos bolos esponjosos encontrados noutras partes do país, o bolo de tacho é deliberadamente pesado e rico. A base é a farinha de milho, mas à massa juntam-se açúcar, mel, café, banha ou azeite e especiarias como canela, sementes de funcho e, por vezes, anis. O chocolate foi uma adição posterior, que tornou o bolo ainda mais intenso e escuro, enquanto a raspa de limão lhe dá alguma leveza. A massa é escaldada com café forte antes de repousar de um dia para o outro, para que os sabores se misturem. Depois de cozido no tacho untado, o bolo sai com um miolo húmido, quase semelhante a um pudim, e uma crosta brilhante.

Historicamente, este bolo fazia parte das casas agrícolas, onde o milho era o cereal do dia a dia e a doçaria festiva tinha de se basear no que a despensa oferecia. A receita foi mais tarde refinada pelos frades franciscanos do Convento de Nossa Senhora do Desterro, em Monchique, no século XVII, a quem se atribui a sua popularização para além do ambiente doméstico. Com o tempo, passou a estar ligado às celebrações rurais, em especial ao Dia do Trabalhador. Aliás, também é conhecido como bolo de maio, porque era tradicionalmente comido a 1 de maio. Nesse dia, os locais “atacavam o Maio” comendo uma fatia do bolo acompanhada por um copo de medronho, ritual que se acreditava fortalecer o corpo para a nova estação. As famílias cozinhavam os seus próprios bolos e trocavam-nos entre vizinhos, numa competição amigável para ver qual era o melhor.

Em 2025, o bolo de tacho de Monchique foi oficialmente reconhecido como Património Cultural Imaterial de Portugal. Lamentamos mas, neste caso, para o provar, terá mesmo de viajar até ao Algarve!

 

Se tem curiosidade em provar algumas destas tradições, junte-se a um dos nossos passeios gastronómicos e culturais em Lisboa e explore também o nosso blogue, onde partilhamos mais histórias que o irão aproximar da cultura gastronómica portuguesa.

 

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