Pratos de bacalhau que provavelmente não conhece

Se há um ingrediente que resume bem as contradições da gastronomia portuguesa, é o bacalhau. Um peixe seco e salgado que nem sequer nada nas nossas águas, mas que, ainda assim, entrou no ADN nacional com força total. Vêmo-lo pendurado, rijo, nas bancas dos mercados, de molho em recipientes atrás dos balcões dos restaurantes e presente em jantares de Natal, casamentos e almoços durante a semana. Em Portugal, o bacalhau é uma obsessão nacional e uma boa parte da nossa cozinha gira à sua volta.
A história do bacalhau começa com a conservação. Muito antes de existirem frigoríficos ou congeladores, salgar e secar o peixe era a única forma de o manter comestível durante mais do que alguns dias. Já durante o período da presença romana na Península Ibérica, há cerca de dois mil anos, se salgava e curava peixe, principalmente espécies locais como sardinha e cavala. Mas foi a partir do século XVI que a conservação de peixe se tornou vital, à medida que o país começava a enviar navios pelo Atlântico e precisava de alimentar populações cada vez mais distantes do litoral. O bacalhau, pescado nas águas frias do Atlântico Norte, especialmente na Terra Nova, no atual Canadá, era perfeito, com carne magra, firme e fácil de secar. Por volta dos séculos XV e XVI, já se teria tornado um alimento padrão em Portugal, naquela altura consumido por necessidade e não propriamente por gosto.
Mas os hábitos, quando repetidos, viram tradição. E foi assim que o bacalhau passou de tolerado a amado. Gerações inteiras aprenderam a transformar este peixe rijo e salgado numa delícia digna de desejo. Passamos assim a demolhámo-lo, desfiá-lo, assá-lo com natas, fritá-lo em pataniscas, envolvê-lo com cebolada, batatas e azeite. Até que comer bacalhau já pouco tinha a ver com obrigação. Eventualmente passamos a comer bacalhau porque gostávamos mesmo. E ainda continuamos a gostar!
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Imagem cortesia Time Out Lisboa
Mesmo nos dias de hoje, com todo o peixe fresco que nos chega diariamente da costa, o bacalhau mantém o seu lugar. Tem uma textura completamente distinta, mais firme, elástica e resistente, e um sabor mais pronunciado do que o do peixe fresco. Não lasca da mesma forma. E não sabe ao mesmo. O bacalhau salgado é uma categoria própria dentro da cozinha portuguesa.
Além disso, o bacalhau ficou intimamente ligado à religião. Durante séculos de estrita prática católica, a carne era proibida em muitos dias do ano, tais como sextas-feiras e a Quaresma, entre outros. O bacalhau preencheu esse vazio: era a proteína de confiança que permitia cumprir a regra sem parecer penitência. Mosteiros, refeitórios militares e cozinhas familiares passaram a contar com ele. Já no século XX, até o Estado Novo o promoveu como símbolo da resistência portuguesa, exaltando valores como a simplicidade e a humildade.
Imagem cortesia de Público
Diz-se que há 365 receitas de bacalhau, uma para cada dia do ano. Provavelmente há mais. Muitas nem sequer estão escritas: são passadas oralmente entre familiares, anotadas à pressa em cadernos ou inventadas com o que houver na despensa.
Quem nos visita, e até muitos portugueses, conhece apenas as receitas clássicas de bacalhau, tais como bacalhau à Brás, bacalhau com natas ou bacalhau à Gomes de Sá, entre outras. Mas há um mundo inteiro de receitas menos conhecidas por descobrir. Algumas são especialidades regionais que nunca saíram da terra onde nasceram. Outras estão à beira da extinção, cozinhadas apenas por alguns resistentes em casa ou durante festivais gastronómicos locais.
É precisamente essas que destacamos hoje. Pratos que dificilmente surgem num menu típico de tasca lisboeta. Terá de sair da cidade, conhecer uma avó da província ou ter a sorte de tropeçar num festival numa aldeia. Mas se os vir no menu, não hesite e faça questão de provar!
Receitas portuguesas de bacalhau menos conhecidas
Tibornada de Góis
Imagem cortesia de Góis
A tibornada é um daqueles pratos de bacalhau que a maioria dos portugueses já ouviu falar, mas que poucos fora da região centro chegaram realmente a provar. Tradicional de Góis, na zona da Serra da Lousã, é uma preparação rústica de bacalhau, batatas cozidas e couve. O segredo para transformar estes ingredientes simples em algo memorável está no azeite novo, ou seja, o azeite acabado de sair do lagar, que se verte bem quente por cima do prato.
Originalmente, a tibornada não era uma refeição do dia a dia. Comia-se uma vez por ano, no final da época da extração do azeite. Era uma espécie de celebração rural, em que trabalhadores e donos de olivais provavam o primeiro azeite da época. O bacalhau era muitas vezes assado nas brasas (ou “no borralho”), o que lhe conferia um ligeiro sabor fumado e uma textura mais firme do que as versões cozidas ou assadas no forno. As batatas e as couves, normalmente couve portuguesa, funcionavam como esponjas para o azeite quente, absorvendo o seu sabor intenso, levemente amargo e frutado.
O nome “tibornada” vem de “tiborna”, que originalmente se referia a fatias de pão quente embebidas em azeite, uma forma tradicional de provar o azeite novo. Pode ser comparada à bruschetta italiana. Mas na zona de Góis, este conceito evoluiu para uma refeição completa, onde o pão dava lugar a um prato inteiro: bacalhau, legumes e, em certas ocasiões, broa de milho. Na tibornada, o azeite quente não é só um toque final, é o protagonista do prato.
A tibornada está intimamente ligada à cultura do azeite do centro de Portugal, em particular ao Vale do Ceira, onde ainda hoje há olivais de origem romana. Antigamente, além de ser usado na cozinha, o azeite era também utilizado como combustível. A altura da produção do azeite, que normalmente acontecia no inverno, era uma tarefa exigente e comunitária. No fim, fazia sentido reunir toda a gente à volta da mesa e desfrutar de uma refeição como esta. Apesar de ter um caráter festivo, a tibornada é na sua essência uma receita simples, com sabores fortes mas sem grandes complicações.
Hoje em dia, já é possível encontrar tibornada durante todo o ano em alguns locais, como o Restaurante Álvaro’s, em Góis. Mas não espere ver este prato em menus de restaurantes citadinos ou em zonas turísticas. Se vir tibornada durante uma visita ao centro de Portugal, especialmente nos concelhos de Góis, Lousã ou Tábua, não perca a oportunidade de a provar.
Bacalhau recheado à moda de Monção
Imagem cortesia de Riveralves
Este é um daqueles pratos de bacalhau que se mantém pouco conhecido, exceto na zona de Monção. No Minho, bem no norte de Portugal, tornou-se quase uma bandeira da identidade gastronómica local. Conhecido como bacalhau recheado à moda de Monção, ou simplesmente bacalhau à Monção, este prato recheado junta sabores tradicionais portugueses com alguns toques inesperados. É rico, substancial e algo mais extravagante do que a média das receitas de bacalhau.
A base é simples mas funciona muito bem: lombos altos de bacalhau salgado, previamente demolhados, são abertos ao meio e recheados com uma tira de carne de porco curada, tradicionalmente presunto. As postas recheadas são passadas por farinha e fritas levemente até dourar. Depois, vem a cobertura: um refogado de cebola, alho, tomate e pimento verde, seguido de uma camada generosa de maionese. Vai tudo ao forno até borbulhar e dourar, e o prato é terminado com azeitonas pretas e salsa fresca. Normalmente, serve-se com batatas fritas às rodelas, bem crocantes. É um prato que não se faz de rogado.
O uso de maionese pode parecer estranho para alguns, mas depois de ir ao forno ganha uma crosta levemente ácida e salgada que equilibra o sabor do bacalhau e do presunto. Na verdade, usar maionese para gratinar bacalhau não é incomum aqui em Portugal, pois é também a técnica usada no bacalhau à Zé do Pipo, típico do Porto. No caso de Monção, o presunto infunde o peixe desde dentro, dando-lhe profundidade de sabor e um carácter quase de carne.
Apesar da aparência tradicional, o prato não tem uma história muito antiga ou documentada. Versões de bacalhau recheado já existiriam no Minho há algum tempo, especialmente tendo em conta o uso frequente de carnes curadas e a forte ligação à cozinha rústica. Mas o reconhecimento mais recente, e o nome bacalhau à Monção, têm origem mais recente. Em 2023, o chef Vítor Sobral, uma figura central na gastronomia portuguesa contemporânea, foi convidado a criar um prato representativo da cozinha local de Monção. Inspirando-se na receita tradicional, substituiu o presunto por uma fatia mais rústica de entremeada curada. A sua versão tornou-se o centro de uma campanha de promoção gastronómica que incluiu formação a chefs locais e uma semana dedicada ao prato, denominada de Semana do Bacalhau à Monção. Tudo isto fez parte de um esforço para colocar Monção no mapa gastronómico, não só pela célebre foda à Monção (um prato de cabrito pascal), mas também por esta nova receita de bacalhau.
Atualmente, o nome bacalhau à Monção aparece em brochuras e eventos de promoção turística. Mas é importante não confundir a versão recente do chef Sobral com as versões mais antigas e caseiras que a inspiraram. O prato tradicional, mais frequentemente conhecido como bacalhau recheado nas cozinhas familiares, não precisa de reinterpretações para brilhar, pois tem personalidade e sabor de sobra.
Monção está no noroeste de Portugal, onde os sabores são fortes, as doses generosas e a cozinha honesta. Não admira que este prato, que junta o melhor da terra e do mar, represente tão bem a cultura gastronómica da região. Apesar do bacalhau não ser sempre o protagonista no Minho, pois esse lugar de destaque vai geralmente para o porco ou o cabrito, quando aparece, vem vestido a rigor, com sabores fortes e aparência rústica, mas surpreendentemente refinado no paladar.
Bacalhau à Narcisa
Imagem cortesia de Teleculinária
O bacalhau à Narcisa é outro prato do norte de Portugal em que o bacalhau é frito até ficar dourado e depois disposto em camadas com finas rodelas de batata frita e cebola, tudo cozinhado com generosas quantidades de azeite. O resultado é aquilo a que poderíamos chamar de verdadeira comida de conforto portuguesa.
Este é um exemplo da cozinha minhota na sua forma mais direta: poucos ingredientes, preparados com cuidado, sem grandes artifícios. No bacalhau à Narcisa, o peixe mantém-se como protagonista, suculento, com um interior ligeiramente lascado, quase carnudo graças à fritura. As batatas ficam macias por dentro, com uma leve crocância nas extremidades, enquanto a cebola, doce e macia, envolve tudo quase como se fosse um glacé de azeite.
Apesar de hoje ser conhecido por vários nomes, como bacalhau à Braga ou bacalhau à Minhota, entre outros, a origem remonta a um lugar muito específico: o antigo Restaurante Narcisa, em Braga. Fundado em 1930, era uma tasca movimentada que ganhou fama pela sua cozinha farta e consistente, acabando por se tornar uma instituição local. A meio do século, o bacalhau à Narcisa já era o prato emblemático da casa, tão associado ao restaurante que até celebridades de visita faziam questão de o provar.
O nome “Narcisa” vem do restaurante original, mas há quem defenda que o prato deveria chamar-se “bacalhau à Eusébia”, em homenagem à cozinheira que criou a receita. Eusébia, matriarca da cozinha, era conhecida pela mão generosa no azeite e por ser fiel à tradição culinária portuguesa, sempre com um toque pessoal. Faleceu em 1972, mas quem pergunta hoje em Braga sobre a verdadeira origem do prato, ouvirá o seu nome com frequência.
Este prato nasceu em Braga, espalhou-se pelo Minho e, eventualmente, chegou a outras zonas do país. Foi copiado, adaptado e renomeado, sobretudo quando outros restaurantes quiseram replicar o seu sucesso. Com o tempo, a designação bacalhau à Minhota tornou-se a mais comum, sendo um termo geograficamente correto, mas que apaga as raízes mais específicas da cidade de Braga. Independentemente do nome, continua a ser uma das formas mais emblemáticas de preparar bacalhau no norte de Portugal. Em Lisboa, é mais comum encontrá-lo como bacalhau à Minhota, mas a receita é praticamente a mesma. Pode provar esta especialidade nortenha na capital em restaurantes especializados em bacalhau, como a Casa do Bacalhau (Rua do Grilo 54) ou a Adega Solar Minhoto (Av. Rio de Janeiro 29F).
Bacalhau à Conde da Guarda
Imagem cortesia de Panelinha de Sabores
Poucos pratos de bacalhau despertam tanta especulação quanto o bacalhau à Conde da Guarda. Uns dizem que era o prato de conforto de um aristocrata. Outros garantem que foi criado por um chef num elegante hotel lisboeta. Há até quem ligue a receita a um embaixador do século XIX, que se inspirou na brandade francesa. A verdade? Ninguém sabe ao certo quem foi o primeiro a juntar bacalhau desfiado, batata cremosa, alho e uma crosta de queijo gratinado até formar um prato reconfortante e dourado. Mas uma coisa é certa: quem o fez, sabia bem o que estava a fazer.
A maioria das versões situa a origem do prato no século XIX, possivelmente na cidade do Porto, onde o 2.º Conde da Guarda, Luís de Oliveira de Almeida Calheiros e Meneses, era cliente habitual de um restaurante modesto. Conta a lenda que pedia o bacalhau confecionado de uma forma muito específica: no forno, cremoso por dentro e com uma crosta dourada por cima. O pedido tornou-se tão popular que o prato passou a ser conhecido pelo seu nome. A ironia está em que, apesar do título nobre, o prato é modesto e até algo económico: leva menos bacalhau do que outras receitas e é esticado com batata e natas para alimentar mais pessoas com menos peixe.
Outra versão diz que o Conde, envolvido no comércio do bacalhau, não tinha dentes, e este prato foi criado especialmente para ele: nada de postas duras ou crostas rijas, apenas comida cremosa, que se come à colher. Verdade ou não, a história contribui para o encanto do prato. Uma terceira hipótese aponta para o Restaurante Aviz, um dos mais luxuosos de Lisboa durante o início do século XX, frequentado por figuras como Calouste Gulbenkian ou a Rainha Isabel II. Segundo essa versão, terá sido o chef Manuel Ferreira, ou o seu sucessor, João Ribeiro, quem fixou a receita em livro, passando-a de especialidade local a clássico nacional.
Independentemente de quem merece o crédito, o bacalhau à Conde da Guarda é hoje uma receita muito apreciada da cozinha tradicional portuguesa. Não é tão comum como outros pratos cremosos, como o bacalhau com natas ou o bacalhau espiritual, mas é muito valorizado por quem ainda o cozinha em casa ou tem a sorte de o encontrar em ementas regionais.
A receita é um gratinado que se situa algures entre o bacalhau espiritual e a comida de conforto com um toque aristocrático. O bacalhau é cozido e desfiado, muitas vezes demolhado em leite para suavizar o sal, depois salteado com cebola, alho e azeite. Junta-se puré de batata (ou batata cozida em cubos pequenos, dependendo da versão), adicionam-se as natas, tempera-se com pimenta e uma pitada de noz-moscada. Quando atinge a consistência cremosa ideal, cobre-se com pão ralado e queijo e leva-se ao forno até alourar. O que sai do forno é um prato rico, profundamente reconfortante, com um toque de elegância.
No Restaurante Belo Horizonte, na cidade da Guarda, este prato ainda é servido semanalmente. Se as suas viagens por Portugal o levarem até à cidade mais alta de Portugal, já sabe o que pedir.
Bacalhau à Assis
Imagem cortesia de O Tempero da Nesita
Alguns pratos nascem em cozinhas nobres ou restaurantes requintados. Outros, como o bacalhau à Assis, surgem da mais pura necessidade e de um momento de pânico criativo. A história é a seguinte: algures no início do século XX, na Serra da Estrela, uma forte tempestade de neve isolou a região da Covilhã, cortando o acesso a uma pensão de montanha modesta. O proprietário, Henrique Assis, viu-se com a casa cheia de hóspedes famintos e pouco mais do que restos de despensa: bacalhau, algumas batatas, cenouras, cebolas, um pouco de presunto, dois pimentos, alguns ovos e um fio de azeite. Juntou tudo como pôde, e assim nasceu o bacalhau à Assis.
O que poderia ter sido apenas uma improvisação esquecível tornou-se uma lenda regional. O prato ganhou fama entre locais e visitantes e, hoje, ocupa um lugar especial na cultura gastronómica da Covilhã. É uma espécie de primo mais rústico e serrano do bacalhau à Brás, mais robusto e ainda mais substancial.
Henrique Assis era, em si, uma figura singular. De ascendência chinesa, terá sido trazido para Portugal por um militar da região. Cresceu na Covilhã, casou-se com uma portuguesa chamada Rosa Fortuna e passou a vida a aperfeiçoar a cozinha tradicional portuguesa. Esteve à frente de várias cozinhas, incluindo a então célebre Pensão O Skiador e o elitista Clube União da Covilhã. Era conhecido localmente por “o chinês”, alcunha pouco subtil, mas reveladora da raridade da sua presença na Beira Interior de então. Ainda assim, conquistou respeito como cozinheiro, deixando como legado um prato que ainda hoje leva o seu nome, quase um século depois.
E o que é, afinal, o bacalhau à Assis? Começa com bacalhau desfiado, previamente demolhado, salteado com cebola finamente fatiada, alho, tiras de presunto e pimentos vermelhos e verdes cortados em juliana. À parte, ralam-se batatas e cenouras em palitos finos e fritam-se até ficarem douradas. A doçura da cenoura é um elemento inesperado que distingue este prato de muitos outros feitos com bacalhau. Quando tudo está cozinhado, mistura-se na frigideira: o bacalhau, as cebolas, o presunto, as batatas e as cenouras. Por fim, juntam-se ovos batidos, temperados com sal, pimenta e salsa picada, que se envolvem cuidadosamente até os ovos estarem apenas cozinhados, mas ainda húmidos. O resultado é rico sem ser pesado, colorido no prato, e com várias texturas: as pontas crocantes da batata palha, a suavidade da cebola e do ovo, e o sabor intenso do presunto com o bacalhau.
É improvável encontrar bacalhau à Assis nas ementas turísticas de Lisboa, mas continua bem presente na Covilhã, especialmente entre famílias que mantêm viva a receita. A Tertúlia Bacalhau à Assis é um grupo que se dedica precisamente a preservar esta tradição culinária local. Mesmo o Clube Nacional de Montanhismo, que atualmente ocupa o mesmo espaço onde nasceu o prato, presta ocasionalmente homenagem à sua história. Pode não ser o prato de bacalhau mais famoso do país, mas mostra bem como a improvisação pode dar origem a criações memoráveis.
Bacalhau albardado
Imagem cortesia de 24Kitchen
Se aprecia comida de conforto bem frita (e quem não aprecia?), o bacalhau albardado merece toda a sua atenção. Pense neste prato como o primo alentejano das pataniscas de bacalhau, mas em vez de bacalhau desfiado envolvido numa massa solta, aqui utilizam-se lascas ou até postas inteiras de bacalhau salgado, mergulhadas num polme de farinha levedado e fritas até ficarem crocantes e douradas. É rústico, saciante e, na nossa opinião, bastante subestimado.
O segredo está no polme. Feito com farinha e fermento (e, por vezes, com ovo), ganha leveza e textura ao fritar, criando uma camada crocante que estala ao trincar. Por dentro, o bacalhau mantém-se suculento e lascado, especialmente se for uma boa posta previamente demolhada com tempo. No Alentejo, onde o bacalhau albardado tem as suas raízes mais profundas, costuma ser servido com uma salada avinagrada ou, para quem quer algo mais indulgente, com arroz de feijão malandrinho. O contraste entre o bacalhau frito e crocante e o arroz cremoso é difícil de superar.
O nome “albardado” vem do verbo albardar, que significa cobrir algo com polme ou farinha antes de fritar. A técnica é antiga e amplamente utilizada, mas no Alentejo tornou-se um método habitual para esticar o bacalhau e, ao mesmo tempo, adicionar sabor e textura ao prato.
Apesar de ser uma receita com raízes no sul do país, existem variações noutros pontos de Portugal. Em Águeda, por exemplo, dá-se um passo extra: depois de frito, o bacalhau é coberto com um molho rico de cebola refogada, engrossado com gemas de ovo e vinagre, e finalizado com salsa picada e, por vezes, um toque de mostarda, transformando o prato numa experiência ainda mais intensa e sofisticada.
É outro daqueles pratos difíceis de encontrar em restaurantes, exceto se estiver mesmo no Alentejo ou num restaurante que privilegie receitas tradicionais e caseiras. Algumas tascas podem incluí-lo como prato do dia, e por vezes aparece em festivais gastronómicos ou eventos dedicados à cozinha regional. Mas, na maioria das vezes, é comida de casa, feita com carinho, e idealmente acompanhada por um bom copo de vinho alentejano.
Bacalhau à moda de Viana
Imagem cortesia de Blogue do Minho
Em Viana do Castelo, o porto mais a norte da costa atlântica portuguesa, o bacalhau foi, historicamente, uma espécie de moeda. Durante séculos, foi daqui que partiram as campanhas de pesca com destino à Terra Nova e à Gronelândia. O bacalhau está entranhado na identidade da cidade, e não admira que uma das receitas mais queridas da região leve o seu nome: bacalhau à moda de Viana.
Há várias versões da receita a circular pelo Minho, mas todas partilham a valorização de ingredientes locais: bacalhau, couve, broa de milho crocante e uma generosa dose de bom azeite. É um prato que combina rusticidade e conforto com um toque de elegância, quando bem preparado. Pode ser confecionado com o bacalhau embrulhado em folhas de couve e assado no forno, ou em camadas, tipo gratinado, com cebolada e migas de broa.
Uma das versões mais clássicas começa com postas altas de bacalhau previamente demolhadas durante alguns dias para suavizar o sal. Em vez de ser desfiado ou integrado num molho, o lombo mantém-se inteiro, ligeiramente cozido ou assado, apenas o suficiente para abrir em lascas. Cada pedaço é envolvido em folhas de couve lombarda, atado com fio de cozinha e levado ao forno. Durante o assado, a couve seca ligeiramente e ganha notas tostadas, enquanto o peixe coze nos seus próprios sucos. O prato é servido sobre rodelas de batata cozida e finalizado com cebola confitada em azeite.
Outra versão, um pouco mais contemporânea mas ainda fiel à tradição, opta por confitar o bacalhau em azeite com alho e cebola, servindo-o depois sobre couve salteada e batata cozida, com uma fatia frita de broa de milho para dar crocância. Em ambos os casos, o contraste de texturas é fundamental: o peixe lasca-se, a cebola é sedosa, a couve terrosa, a batata macia e a broa estaladiça. Por vezes, o prato é guarnecido com azeitonas pretas ou salsa.
Embora o bacalhau à moda de Viana seja sobretudo confecionado em casa ou servido em festas locais, pode encontrá-lo em restaurantes tradicionais da cidade, sobretudo durante os fins de semana gastronómicos promovidos pelo município. Eventos como o Fim de Semana Gastronómicoo celebram este prato e outros da região, como as pataniscas e a torta de Viana, harmonizando-os com vinhos do Minho, nomeadamente o vinho verde. Se visitar Viana do Castelo ou a região envolvente, fique atento. Pode aparecer com o nome de bacalhau à Viana, bacalhau à moda de Viana ou até bacalhau com couve e broa, muitas vezes escrito à mão num quadro de ardósia.
Caras de bacalhau com grão
Photo by Necas de Valadares
Quando se diz que, em Portugal, se aproveita tudo do bacalhau, não é força de expressão. Enquanto os visitantes costumam preferir os cortes nobres, como lombos altos, filetes espessos, e pratos de forno dourados, a verdadeira alma da cozinha tradicional portuguesa de bacalhau vive nas partes menos glamorosas: as caras, as línguas, os sames e até os espinhaços com alguma carne ainda agarrada. Entre estas iguarias, as caras de bacalhau com grão são um prato que revela muito sobre o país: aqui, convivem o aproveitamento, a tradição e o sabor.
As caras de bacalhau referem-se à parte inferior da cabeça do peixe, sem a língua, mas com as bochechas e os tecidos conjuntivos entre o osso e a pele. São gelatinosas, ricas em sabor e com muita textura, bem longe dos filetes macios e que se separam em lascas, mas com uma profundidade de sabor que os verdadeiros apreciadores consideram incomparável. Quem aprecia as bochechas de porco assado ou uma caril de cabeça de peixe com colagénio, reconhecerá imediatamente o encanto destas partes.
As línguas de bacalhau também são uma iguaria muito apreciada. Trata-se de pequenos pedaços de carne em forma de língua que se encontram na parte inferior da mandíbula do bacalhau, com uma textura elástica mas macia. Ambas são difíceis de encontrar em supermercados convencionais, sendo vendidas salgadas, em grandes quantidades, em peixarias tradicionais ou lojas especializadas. Em Lisboa, com alguma sorte, poderão ser encontradas nas ementas escritas a giz de algumas tascas antigas, como prato do dia.
Historicamente, estes pratos nasceram de uma mentalidade de desperdício zero. Em tempos em que nada podia ser deitado fora, aproveitava-se o peixe inteiro: lombos, cabeças, ossos e até fígado (que deu origem ao temido óleo de fígado de bacalhau). As caras com grão tornaram-se uma forma de transformar um corte barato numa refeição completa, combinando o peixe de textura rica com grão-de-bico, batatas, couve, cenouras, ovos cozidos e azeite. Por vezes, o prato é referido como caras de bacalhau com todos, e o nome não engana.
Se outrora este prato estava associado à contenção ou ao jejum religioso, especialmente durante a Quaresma, hoje é um favorito entre os verdadeiros fãs de bacalhau, muitos dos quais defendem que esta é, de facto, a melhor parte do peixe, pela sua gordura e suavidade. Do ponto de vista nutricional, oferece muito mais do que sabor: estas partes são ricas em proteína, colagénio, ómega-3 e minerais essenciais, excelentes para as articulações e para a pele.
Atualmente, é raro encontrar caras de bacalhau com grão em restaurantes, sobretudo nos centros urbanos, onde se privilegiam pratos mais “limpos” e sem espinhas. Mas, em certos sítios, como tascas de bairro ou casas com alma antiga, ainda é possível saborear este clássico, mesmo aqui na capital.
Feijoada de sames
Imagem cortesia de Sr. Bacalhau
Para quem acredita que o sabor vive nos cortes esquecidos e nas partes improváveis, a feijoada de sames é imperdível. É a prima marítima da célebre feijoada à transmontana, aquela que é feita com feijão e carnes fumadas, mas aqui trocam-se os enchidos pela parte mais gelatinosa e subestimada do bacalhau: os sames. Trata-se de um prato simples e reconfortante da costa atlântica portuguesa que transforma o desprezado em tesouro local.
Mas afinal, o que são sames? São as bexigas natatórias do bacalhau, ou seja, um órgão que permite ao peixe regular a sua flutuabilidade. Encontram-se ao longo da espinha e são retirados quando o peixe é aberto e limpo. Durante gerações, foram considerados restos sem valor. Mas para as tripulações dos bacalhoeiros que enfrentavam os mares gelados da Terra Nova, nada se desperdiçava. Os sames eram limpos e salgados a bordo e, uma vez em terra, transformavam-se numa das muitas receitas engenhosas da nossa gastronomia popular.
Poder-se-á imaginar esta feijoada como uma fusão entre a versão tradicional e um ensopado marinho rico em colagénio. A base é familiar: alho, cebola, azeite, tomate e feijão branco. Junta-se chouriço para o toque fumado, um pouco de vinho branco para realçar o sabor, e finalmente os sames, previamente demolhados, limpos e cortados em pedaços.
Mas o destaque vai para a textura. Os sames estão longe da lasca macia dos lombos. São escorregadios, gelatinosos, com alguma cartilagem, algures entre dobrada e lula. Para alguns, isso pode ser um obstáculo. Para outros (e somos um grupo fiel!), é o verdadeiro conforto no prato. Quando bem cozinhados, absorvem o sabor do caldo como esponjas e conferem à feijoada uma untuosidade irresistível, só possível com colagénio cozido lentamente.
Para os preparar corretamente, a dessalga é essencial. Como outras partes do bacalhau conservadas em salmoura, os sames requerem mais tempo de demolha do que os lombos. Além disso, devem ser cozinhados com suavidade, nunca em fervura forte. Uma fervura rápida, seguido de cozedura lenta no estufado, garante que ficam tenros sem endurecer.
A origem da feijoada de sames remonta às comunidades piscatórias da Figueira da Foz, cidade ligada há muito à pesca do bacalhau. Segundo historiadores locais e o Centro Interpretativo do Bacalhau, em Lisboa, este prato era comum entre os moços do convés e os chamados cães de bordo, que eram membros das tripulações que transformavam sobras em pratos memoráveis. A par das línguas fritas, das caras de bacalhau com grão e da chora de bacalhau (um caldo feito com as cabeças), a feijoada de sames é um dos melhores exemplos da tradição portuguesa de aproveitar o animal “do focinho à cauda”.
Cataplana de bacalhau
Imagem cortesia de Receitas Globo
A cataplana de bacalhau é daquelas receitas que consegue ser festiva e reconfortante ao mesmo tempo. Junta ingredientes simples como bacalhau, batatas, pimentos e cebola, mas cozinha-os de forma a extrair o melhor de cada um. O segredo está no tacho: a cataplana. Esta panela de cobre em forma de concha, com dobradiça de um lado e fecho do outro, é um ícone da cozinha portuguesa, sobretudo no Algarve. Embora as suas origens exatas sejam incertas, acredita-se que derive de influências norte-africanas, especialmente do tajine marroquino. Ambas cozinham lentamente, em ambiente fechado, retendo o vapor, concentrando os sabores e preservando a textura dos ingredientes. A cataplana, no entanto, é uma invenção 100% portuguesa, criada por artesãos do cobre algarvios, e ainda hoje símbolo da cozinha do sul.
Inicialmente feita em cobre puro, devido à excelente condução de calor, a cataplana é agora também produzida em alumínio ou aço inoxidável, embora as versões clássicas continuem a ser as mais procuradas. Mais do que um belo utensílio, é uma ferramenta altamente eficiente: reduz o tempo de cozedura, mantém a humidade e impressiona qualquer comensal quando se abre à mesa e liberta os aromas concentrados. Tradicionalmente usada para pratos de marisco, como amêijoas ou misturas de peixe e moluscos, a cataplana adapta-se perfeitamente a carnes, vegetais ou, como neste caso, ao bacalhau.
Na versão com bacalhau, este é previamente demolhado e depois colocado em camadas com batata às rodelas, cebola, alho, pimentos vermelho e verde, tomate cortado e, por vezes, na cozinha moderna, tomate-cereja para um toque doce. Junta-se louro, um fio generoso de azeite e um pouco de vinho branco. Salsa ou coentros picados entram no final para dar frescura. Nalgumas versões, junta-se miolo de camarão nos últimos minutos de cozedura, acrescentando complexidade ao prato. Tudo é colocado cru na cataplana, que é depois fechada e deixada a cozinhar lentamente por cerca de meia hora. O resultado é um prato suculento, aromático, com camadas de sabor e molho perfeito para mergulhar o pão.
Nos restaurantes, vale a pena recordar que a cataplana é pensada para partilhar. Em Lisboa, não é necessário cozinhar em casa para provar uma boa cataplana de bacalhau. A Casa do Bacalhau é uma referência, mas também vale a pena visitar a Tasca da Esquina (Rua Domingos Sequeira 41C), o restaurante moderno de inspiração portuguesa do chef Vítor Sobral. Aí, a cataplana de bacalhau ganha um toque mais sofisticado. Se for acompanhado, é a desculpa perfeita para também pedir outro dos pratos do chef: o bacalhau à Monção (mencionado acima). Assim, poderá provar pelo menos duas das sugestões menos conhecidas que destacámos neste artigo.
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