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Castanhas assadas e as celebrações de São Martinho

Roasted chestnuts in a pan with a glass of red wine, on a rustic wooden table.

 

Há um cheiro muito particular que define o mês de novembro em Portugal. Basta dar um passo nas ruas do centro de Lisboa, por esta altura do outono, para sentir no ar o aroma doce e fumado das castanhas assadas a estalar sobre o carvão. Os vendedores de rua cuidam dos seus carrinhos de metal, enrolando cartuchos de papel onde servem as quentes e reconfortantes castanhas assadas, que são, sem sombra de dúvida, uma das melhores comidas de rua portuguesas para saborear nos dias frios.

Imagem de capa cortesia de Viva o Vinho

 

Close-up of a pile of charred chestnuts with cracked shells.Imagem cortesia de Florestas.pt

 

Por volta de 11 de novembro, este cheiro torna-se quase simbólico. É o Dia de São Martinho, quando se abrem as primeiras pipas de vinho novo, acendem-se fogueiras e comem-se castanhas em todo o país. A lenda conta que, num dia de tempestade, São Martinho, então soldado romano, partilhou a sua capa com um mendigo que tremia de frio, e que, de imediato, o céu se abriu e o sol brilhou. Este episódio deu origem à expressão “Verão de São Martinho”. E, de facto, é aquela altura do ano em que, durante alguns dias, o outono abranda e o tempo aquece, embora, hoje em dia, já nem sempre seja fácil distinguir o “milagre” de São Martinho das alterações climáticas.

Para muitos de nós, esta celebração carrega também uma boa dose de nostalgia. Recorda os magustos, festas comunitárias de castanhas assadas realizadas em praças, pátios de escolas ou zonas rurais, onde o fumo e as gargalhadas enchiam o ar. Ainda hoje, a tradição mantém-se, embora por vezes com novas roupagens, em forma de festas de rua, encontros em adegas ou versões modernas, à lisboeta, deste ritual rural ancestral.

 

Quem foi São Martinho e como começou a tradição

A história de São Martinho remonta a muito antes das castanhas assadas se tornarem um petisco vendido nas esquinas das cidades. Segundo a lenda, Martinho era um soldado romano que, ao cavalgar em plena tempestade, encontrou um mendigo a tremer de frio. Cortou então a sua capa ao meio e partilhou-a com o homem e, quase de imediato, as nuvens abriram-se e o sol apareceu. Essa mudança repentina de tempo ficou conhecida como Verão de São Martinho e, desde então, a data simboliza a generosidade e a transição entre as estações.

 

Painting of a soldier cutting a cloak to share with a seated, half-naked man beside a horse.Imagem cortesia de Santo Tirso TV em Facebook

 

Para além desta história de bondade, o dia 11 de novembro coincide com o fim das colheitas, quando se abrem as barricas para a primeira prova do vinho novo e as famílias se juntam para celebrar a abundância antes da chegada do inverno. No Portugal rural, bebia-se água-pé, uma bebida leve e doce feita a partir da segunda prensagem das uvas, e jeropiga, um vinho fortificado com aguardente. E, claro, assavam-se castanhas nas fogueiras, já que era a época em que caíam frescas e estavam no seu melhor.

Com o tempo, estes rituais simples fundiram-se com a festa religiosa de São Martinho, misturando devoção, agricultura e convívio popular até se tornarem algo profundamente português. Vendo as coisas com um olhar mais moderno, poderíamos dizer que estas celebrações são mais uma prova de que, em Portugal, até os santos sabem fazer uma boa festa.

 

O que é o magusto?

Se o Natal é tempo de família e a Páscoa é tempo de fé, o São Martinho é tempo de fogo. A palavra magusto vem do latim magnus ustus, que significa “grande fogo”, elemento indispensável nesta celebração. Tradicionalmente, trata-se de um convívio à volta de uma fogueira, onde se assam castanhas, se cantam canções e se passam copos de jeropiga ou de vinho novo de mão em mão. No meio rural, era um evento comunitário que marcava o fim do ciclo agrícola, quando os vizinhos se juntavam para partilhar o que tinham, incluindo o vinho novo, as castanhas da recente colheita e um sentimento de união e de calor humano.

 

Person balancing on a stick over a fire in front of a crowd at night.Imagem cortesia de CM Arouca

 

Para muitos portugueses, o magusto está também associado a memórias de infância, como recreios cheios de fumo, mãos manchadas de cinza e aquela primeira dentada numa castanha quente que queima os dedos mas que acaba por valer a pena. Em algumas localidades, as pessoas saltavam sobre as brasas para dar sorte ou esfregavam fuligem umas nas outras, numa brincadeira que recordava o espírito leve e descontraído do dia.

 

Children playing outdoors, one boy smiling with face painted black, holding a bag.Imagem cortesia de Agrupamento de Escolas de Ponte da Barca

 

Hoje, os magustos assumem novas formas. Em Lisboa, é possível encontrá-los em mercados, adegas ou centros comunitários, sendo encontros onde o cheiro das castanhas assadas se mistura com música e comida de rua, mas agora num ambiente mais urbano e organizado. Por vezes (ainda que raramente), alguns restaurantes criam menus especiais com pratos de castanha e sobremesas sazonais. Das associações de bairro, sobretudo nas zonas mais tradicionais como a Graça e a Mouraria, às celebrações públicas em jardins e praças, o magusto evoluiu e, infelizmente, tem-se tornado cada vez mais raro. Mas, quando acontece, a sua essência mantém-se, girando em torno do fogo, da comida e da vontade de partilhar momentos simples, como antigamente.

 

A tradição portuguesa de comer castanhas assadas no São Martinho

Não se pode falar de São Martinho sem falar de castanhas assadas. São, literalmente, o sabor da estação e anunciam o outono profundo.

 

Man making candy floss outdoors with machine and sugar cone in a sunny street setting. Imagem cortesia de Ora Pois

 

Em Lisboa, como em tantas outras cidades e vilas do país, os vendedores continuam a assá-las à moda antiga, isto é, sobre brasas, em pequenos tambores de metal com buracos que deixam o fogo respirar. As castanhas são cortadas com uma faca para não rebentarem, polvilhadas com sal grosso e agitadas constantemente até a casca escurecer e o interior ficar macio e adocicado. São servidas em cartuchos de papel e, antes de existirem regras sanitárias mais apertadas, era comum esses cartuchos serem feitos a partir das páginas das Páginas Amarelas, a antiga lista telefónica. Hoje, os vendedores usam papel alimentar, embora alguns ainda imprimam o mesmo padrão nostálgico, por isso não estranhe se o seu cartucho se parecer com um pequeno jornal. Nos últimos anos, há até versões modernas com dois compartimentos, um para as castanhas e outro para as cascas. O gesto de comprá-las, pegar no cartucho e descascar cada uma lentamente é uma forma deliciosa de aquecer as mãos enquanto se percorrem as ruas de Lisboa.

 

Man cooking at outdoor market stall surrounded by smoke.Imagem cortesia de Ericeira Mag

 

Muito antes da batata ou até do milho fazerem parte da alimentação portuguesa, a castanha era um alimento essencial em muitas regiões, sobretudo nas montanhosas, como Trás-os-Montes, onde o trigo não crescia com facilidade. Coziam-se, moíam-se em farinha, juntavam-se a ensopados ou faziam-se pães, e este era um ingrediente humilde, mas vital, que alimentava as famílias durante os meses frios. Por isso, ainda hoje, a castanha tem um valor simbólico especial ao representar sustento, generosidade e a alegria das coisas simples. Comer castanhas assadas em Portugal, no mês de novembro (ou em qualquer altura do inverno), é participar num costume que há muitas gerações aquece as mãos e o coração dos portugueses.

 

O que comer e beber no São Martinho

Se o São Martinho tivesse uma mesa, seria simples, mas repleta de conforto. A estrela principal seria, claro, as castanhas assadas, mas o dia também serve para brindar aos primeiros goles da época de vinho novo, geralmente fresco, ligeiramente frisante e com baixo teor alcoólico. Tradicionalmente, é acompanhado de jeropiga, um vinho doce e fortificado obtido pela adição de aguardente ao mosto não fermentado, ou de água-pé, a modesta bebida caseira feita a partir da segunda prensagem das uvas.

 

Jeropiga bottle on a bed of chestnuts.Imagem cortesia de VortexMag

 

Estas eram as bebidas das famílias rurais, onde nada se desperdiçava. Hoje, fazem parte do imaginário do São Martinho, apreciadas nos magustos que ainda acontecem um pouco por todo o país. Em Lisboa, é mais difícil encontrar estas tradições ligadas à bebida, mas, com sorte, algumas tascas servem-nas em dias especiais. Caso contrário, pode eventualmente encontrá-las em restaurantes que criam menus sazonais e incluem a castanha tanto em pratos salgados como em sobremesas, desde a sopa de castanha, aos rojões com castanhas (foto abaixo), até à doçura de um pudim de castanha.

 

Clay pot with roasted meat, chestnuts, and chopped parsley garnish.Imagem cortesia de Restaurante Furna

 

Como viver o São Martinho em Lisboa

Se estiver em Lisboa por volta de 11 de novembro, considere-se com sorte. É nesta altura que a cidade cheira a castanhas assadas e os lisboetas parecem ter decidido, em conjunto, que estar na rua com um cartucho de papel e um copo de algo doce é motivo suficiente para celebrar. Não precisa de bilhete, nem de reserva, basta seguir o rasto do fumo.

A forma mais simples de participar é comprar castanhas assadas a um dos muitos vendedores espalhados pela cidade. Vai encontrá-los no centro, junto ao Rossio, ao longo da Avenida da Liberdade ou nas paragens de elétrico do Chiado e do Martim Moniz. Provavelmente vai ouvi-los antes de os ver, pois alguns ainda apregoam o clássico “Quentes e boas!”, tal como se fazia antigamente, um slogan que se tornou parte da banda sonora do outono português. Se combinar as castanhas com um copo de jeropiga lhe parecer missão impossível no centro de Lisboa, experimente uma ginjinha, o licor de ginja que aquece o corpo e cumpre o mesmo propósito.

 

Chestnuts in a pan and fabric bag with two glasses of red wine on green leaves.Imagem cortesia de Balance Fitness Club

 

Para algo mais comunitário, procure os magustos organizados não só em mercados e bairros de Lisboa, mas também pelas juntas de freguesia, que frequentemente promovem convívios ao ar livre. Nos últimos anos, a Junta de Freguesia de Arroios tem assado castanhas na Praça José Fontana, a Misericórdia tem celebrado no Jardim de São Pedro de Alcântara, e a Estrela organiza o seu próprio magusto no jardim com o mesmo nome. Outros surgem em locais como o Mercado de Campo de Ourique, o Jardim da Estrela ou o Parque Eduardo VII, com castanhas assadas, música ao vivo e muito vinho a circular. Mesmo as associações de bairro mais pequenas, como as da Graça, de Alcântara e da Penha de França, mantêm viva esta tradição com festas informais que captam o mesmo espírito alegre e fumegante.

 

Bundt cake with caramel sauce on a plate, surrounded by autumn leaves, and a glass of red wine.Imagem cortesia de Receitas de Culinária TV

 

Algumas adegas e restaurantes também assinalam a data com menus de São Martinho, recheados de comida de conforto, sobremesas de castanha e harmonizações vínicas que completam a experiência.

E, para quem não estiver em Portugal em novembro, há sempre forma de celebrar à distância. Com apenas um punhado de castanhas, um pouco de sal e o espírito certo, pode recriar em casa um pequeno sabor do São Martinho.

 

Como fazer castanhas assadas em casa

As castanhas não são apenas deliciosas, são também naturalmente isentas de glúten, pobres em gordura e uma ótima fonte de fibra e vitamina C. Em suma, uma desculpa saudável para continuar a petiscar enquanto explora o melhor da cultura gastronómica portuguesa.

 

Baking tray of roasted chestnuts being held in an oven by a gloved hand.Imagem cortesia de A Pitada do Pai no Intermarché

 

Nada se compara ao sabor fumado das castanhas assadas que perfumam as ruas de Lisboa, mas é possível recriar uma versão surpreendentemente boa em casa. Eis como:

Ingredientes:
– Castanhas frescas
– Sal grosso
– Água

Preparação:

  1. Pré-aqueça o forno a 220 °C.
  2. Dê um golpe nas castanhas: com uma pequena faca afiada, faça um corte em cruz no lado mais arredondado de cada castanha. Isto evita que rebentem no forno e facilita a remoção da casca depois de assadas.
  3. Demolhe (opcional, mas vale a pena): coloque as castanhas numa taça com água morna durante cerca de 10 minutos. Este passo ajuda a amolecer a casca e torná-las mais tenras.
  4. Escorra e disponha as castanhas num tabuleiro, numa só camada, com a cruz virada para cima. Polvilhe generosamente com sal grosso.
  5. Leve ao forno durante 20 a 25 minutos (dependendo do tamanho das castanhas), agitando o tabuleiro a meio da cozedura, até as cascas escurecerem e os cortes abrirem.
  6. Envolva e deixe repousar: assim que estiverem prontas, embrulhe-as num pano limpo durante alguns minutos. O vapor ajuda a soltar a pele, tornando-as mais fáceis de descascar e ainda mais agradáveis de comer. 

Sirva-as ainda quentes, idealmente com um copo de jeropiga ou, se estiver longe de Portugal, com o vinho doce mais parecido a que tiver acesso. O sabor não será exatamente o mesmo das castanhas assadas sobre o carvão nas ruas de Lisboa, mas trará o mesmo espírito de conforto e de calor humano. E, quem sabe, talvez desperte a vontade de marcar uma viagem a Portugal no próximo outono.

 

Seguindo o espírito que tantas vezes define a gastronomia portuguesa, o São Martinho é, no fundo, um convite a abrandar o ritmo, partilhar e saborear as coisas simples da vida. Se quiser descobrir mais histórias como esta, e muitas razões para se apaixonar por Portugal à mesa, siga a Taste of Lisboa no Instagram.

 

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