Rabanadas: como este doce humilde se tornou um clássico do Natal português (com receita)
À primeira vista, as rabanadas portuguesas podem parecer apenas uma versão do famoso French toast. Mas, por cá, têm um simbolismo muito mais profundo do que qualquer coisa que se associe a brunch. São uma das estrelas absolutas da mesa de doces de Natal, lado a lado com sonhos, filhós, azevias e outros doces fritos.
Apesar de serem humildes em ingredientes e preparação, já que aproveitam pão duro como base da receita, é fascinante perceber a história das rabanadas e como conquistaram um lugar tão importante para nós, portugueses, nesta época do ano. Praticamente todas as culturas que consomem pão têm a sua versão de fatias embebidas e fritas. Alguns pudins medievais seguiam este princípio, originando especialidades que hoje conhecemos melhor, como o pain perdu francês ou as torrijas espanholas, associadas à Páscoa. Portugal, porém, pegou na mesma técnica simples e transformou-a numa tradição natalícia.
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Imagem cortesia de Receita da Boa
Mas o ritual das rabanadas não termina na noite da consoada. Parte da magia está precisamente no dia seguinte. Mesmo sendo normalmente comidas frias, muitos defendem que ficam ainda melhores depois de repousarem, quando o pão absorve mais profundamente as caldas aromáticas. Ao contrário do pão fatiado uniforme usado noutras versões internacionais, as rabanadas pedem pães portugueses mais firmes e com miolo denso. Dependendo da região, pode ser cacete, bijou, pão de água ou até o mais neutro pão de forma, cada um influenciando a textura final de maneira distinta.
O nome também pode variar, embora isso nada tenha a ver com o tipo de pão usado. Conforme a zona do país, pode encontrar rabanadas com o nome de fatias douradas ou até de fatias paridas, estas últimas associadas tradicionalmente ao reforço alimentar de mulheres que tinham acabado de dar à luz. E, consoante a casa, chegam à mesa “secas”, só com açúcar e canela, ou mais húmidas, bem regadas com calda aromatizada com limão e, por vezes, um toque de vinho do Porto.

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Para além destas duas versões clássicas, algumas famílias e pastelarias levam o doce ainda mais longe, cobrindo as rabanadas com doce de ovos ou polvilhando-as com frutos secos picados, que amolecem à medida que se envolvem na calda. Restaurantes contemporâneos também têm reinventado o conceito, servindo rabanadas com creme, curds de citrinos ou até uma bola de gelado, numa clara modernização deste doce tão tradicional.

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Mas a verdadeira assinatura portuguesa não está na técnica, está na cultura. Em França ou na América do Norte, isto seria pequeno-almoço. Em Espanha, uma gulodice da Quaresma ou da Páscoa. Em Portugal, as rabanadas pertencem aos encontros de família e ao ritual da noite de Natal, o que lhes confere um peso emocional que nenhuma outra versão internacional possui.
Uma breve história das rabanadas
Muito antes de alguém em Portugal lhes chamar rabanadas, já se recuperava pão duro com leite, ovos e calor. A técnica surge em alguns dos primeiros livros de cozinha europeus, numa época em que o pão era a base da alimentação e desperdiçá-lo era impensável.
Conseguimos facilmente encontrar algo semelhante às rabanadas, e até ao que hoje se chama de French toast no mundo anglófono, na época romana. Na coletânea de receitas “Apicius’ De re coquinaria” existe uma preparação chamada aliter dulcia (na imagem abaixo numa interpretação moderna), onde fatias de pão são embebidas em leite, fritas e regadas com mel. Isto não anda muito longe da rabanada que conhecemos atualmente.

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Na Idade Média, metade da Europa fazia alguma variação deste doce. Na Alemanha, surge como arme ritter, ou “pobres cavaleiros”, nome que denuncia a sua função como sendo um doce barato e energético, pensado para alimentar famílias que precisavam de calorias. Em Inglaterra, aparece em manuscritos como payn purdew, ligado ao francês pain perdu, ou “pão perdido”.

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As tradições religiosas influenciavam fortemente os hábitos alimentares, já que as comunidades alternavam períodos de jejum com momentos de indulgência. Na Península Ibérica, isto acabou por desenvolver identidades culinárias distintas. Espanha inclinou-se para as torrijas (na imagem acima), associadas à Quaresma e à Semana Santa, muitas vezes embebidas em vinho em vez de leite e finalizadas com uma calda espessa e perfumada. França manteve o pain perdu sobretudo num contexto doméstico e secular, como forma simples de aproveitar pão duro. Portugal, por sua vez, acabou por reservar as rabanadas quase exclusivamente para as festividades de dezembro.
A ligação entre as rabanadas e a doçaria conventual
Se houve um lugar onde as rabanadas verdadeiramente ganharam identidade portuguesa, foi dentro das cozinhas dos conventos. Durante séculos, ninguém cozinhou com mais ovos, açúcar e imaginação do que as freiras que viviam atrás dos muros das instituições religiosas. Como já explorámos quando falámos do universo da doçaria conventual, muitas receitas nasceram da necessidade de aproveitar gemas. Os conventos recebiam ovos como oferta dos camponeses e utilizavam uma quantidade impressionante de claras para engomar hábitos ou clarificar vinhos. O resultado era um excedente de gemas que precisava de ser aproveitado. Mesmo que as receitas mais antigas fossem adoçadas com mel, a partir do momento em que o açúcar começou a chegar com mais abundância das plantações na Madeira e no Brasil, as cozinhas conventuais tornaram-se verdadeiros laboratórios de doces que ainda hoje definem a pastelaria portuguesa. As rabanadas acabariam por encontrar aí o seu lugar.
Mas se a tradição conventual contribuiu para a popularização das rabanadas, o mesmo se deve à frugalidade do mundo rural. Durante grande parte da história do país, o pão não era um produto banal de supermercado, mas sim o resultado de trabalho árduo. As famílias coziam grandes pães para durarem a semana e deixar o pão estragar nunca era opção. Sopas, açordas, migas e doces como as rabanadas nasceram desta economia de respeito pelo alimento. Assim, quando os conventos divulgaram versões mais ricas de pão frito adoçado, os cozinheiros por todo o país já dominavam a técnica base.
Quando as rabanadas chegaram à mesa da consoada, já traziam consigo todas estas camadas da doçaria conventual, da lógica de aproveitamento típica da vida no campo e até dos ciclos religiosos de jejum e festa.
Porque é que as rabanadas se tornaram uma sobremesa de Natal em Portugal

Imagem cortesia de VortexMag
As rabanadas não se tornaram um clássico de Natal apenas por serem doces e reconfortantes. O seu lugar na mesa de sobremesas das festas resulta do momento certo, simbolismo e de uma noção antiga de abundância sazonal. Em dezembro, sobretudo no Portugal rural, as famílias tinham acesso a ingredientes que escasseavam durante o resto do ano. A matança do porco trazia banha e gordura fresca. As pipas de vinho eram abertas, o açúcar reabastecido nas feiras de outono e os fornos aqueciam-se para cozer pão capaz de aguentar o frio das semanas seguintes. Se havia um mês em que fritar fatias de pão embebidas em leite e ovos fazia sentido prático e emocional, era este.
Se olharmos com atenção, percebemos também que as rabanadas carregam simbolismo. O Natal em Portugal sempre foi menos sobre luxo e mais sobre uma celebração íntima, durante muito tempo profundamente religiosa. As rabanadas materializam precisamente isso, o não ter muito, mas transformar o que se tem em algo suficientemente especial para partilhar. Encaixam perfeitamente bem no espírito da época, pelo menos desde uma perspectiva tradicional.
O ritual de comer as rabanadas em família também tem o seu peso. A consoada prolonga-se pela noite dentro e a sobremesa é quase sempre servida depois da Missa do Galo (nas famílias que ainda a mantêm, embora antigamente fosse praticamente regra) ou, nos tempos atuais, após a troca de presentes. As rabanadas, sejam polvilhadas com açúcar e canela ou mergulhadas em calda, são fáceis de preparar com antecedência e conservam-se bem. Por isso, são perfeitas para comer tarde nessa noite, ou até ao pequeno-almoço no dia de Natal.
Hoje, algumas casas seguem menus tradicionais, enquanto outras já adotam influências contemporâneas ou internacionais. Mas, seja qual for o estilo, é quase certo que encontrará uma forma ou outra de rabanada à mesa. E se perguntar a dez famílias como as fazem, ouvirá doze respostas diferentes.

Imagem cortesia de Luisinha
A receita é reconhecível em todo o país, mas a sua personalidade muda de região para região e, muitas vezes, de avó para avó. No Norte, onde o doce é mais conhecido como rabanadas, as fatias são mais espessas e firmes, normalmente cortadas de cacete (na imagem acima), semelhante a uma baguete mais seca, perfeita para absorver a mistura de leite. As famílias que gostam de um toque mais guloso podem acrescentar um pouco de vinho do Porto à calda. Mais a sul, o nome fatias douradas é mais popular e as fatias são geralmente servidas “secas”, com uma camada generosa de açúcar e canela que, no dia seguinte, costuma suar, transformando-se quase numa espécie de calda. Nas Beiras e no Alentejo, o pão é tradicionalmente mais rústico, absorvendo o líquido mais devagar e resultando numa rabanada mais firme.

Imagem cortesia de Continente
Por todo o país, as fatias são demolhadas numa mistura de leite e ovo, mas, sobretudo no Minho e em Trás-os-Montes, as rabanadas de vinho, embebidas em vinho em vez de leite para um sabor mais adulto, continuam bem vivas. Antigamente, sobretudo nas zonas montanhosas e frias, o vinho era mais abundante do que o leite, por isso a escolha fazia todo o sentido. Usava-se muitas vezes vinho tinto novo ou vinho abafado, com um toque de doçura, para dar mais sabor. Hoje em dia, também existem versões mais requintadas feitas com vinho do Porto.
Receita de rabanadas tradicionais portuguesas

Imagem cortesia de Fula
As rabanadas são um daqueles doces de Natal que parecem elaborados, mas na verdade são bastante gulosas e fáceis de fazer. Se nunca as preparou em casa, deixamos o convite, já que com meia dúzia de ingredientes simples, que encontra em praticamente qualquer lugar do mundo, consegue recriar esta tradição portuguesa na sua própria cozinha.
Ingredientes (4 porções)
– 8 fatias grossas de pão duro (cerca de 3 cm cada)
– 500 ml de leite gordo
– 100 g de açúcar (para aromatizar o leite)
– Casca de 1 limão (só a parte amarela)
– 1 pau de canela
– 3 ovos
– Óleo vegetal para fritar
Para polvilhar açúcar e canela:
– 100 g de açúcar
– 1 a 2 colheres de chá de canela em pó
Para a calda (opcional, em alternativa ao açúcar com canela):
– 250 g de açúcar
– 300 ml de água
– 1 pau de canela
– 1 tira de casca de limão
– Opcional: 2 a 3 colheres de sopa de vinho do Porto
Preparação
- Aqueça o leite com os 100 g de açúcar, a casca de limão e o pau de canela. Deixe levantar fervura suave, mexa para dissolver o açúcar e desligue o lume. Deixe arrefecer até ficar morno.
2. Bata os ovos numa taça larga, onde caiba confortavelmente uma fatia de pão.
3. Passe cada fatia pelo leite morno até ficar bem embebida, mas sem se desfazer (cerca de 10 a 15 segundos de cada lado, conforme o tipo de pão). Deixe escorrer o excesso.
4. Mergulhe de seguida cada fatia nos ovos batidos, cobrindo ambos os lados.
5. Aqueça óleo numa frigideira larga, em lume médio. Frite as fatias em pequenas quantidades, 2 a 3 minutos de cada lado, até ficarem douradas. Retire e coloque sobre papel absorvente. - Para finalizar, escolha uma das opções:
Opção A, com açúcar e canela:
Misture o açúcar com a canela num prato raso. Passe cada fatia ainda quente pela mistura, cobrindo-a por completo.
Opção B , com calda:
Coloque todos os ingredientes da calda num pequeno tacho e deixe ferver em lume brando durante 8 a 10 minutos, até engrossar ligeiramente. Regue as rabanadas ainda mornas com a calda quente e deixe repousar enquanto absorvem o sabor. Se usar vinho do Porto, junte-o no final, já fora do lume.
Receita de rabanadas de vinho

Imagem cortesia de Teresa activa no Youtube
Esta variação do Norte de Portugal é perfeita para quem quer levar as rabanadas para um território mais adulto. Em vez de leite, o pão é embebido em vinho tinto ligeiramente adoçado, resultando numa rabanada mais aromática, muito diferente de qualquer versão internacional semelhante à qual estamos habituados.
Ingredientes (4 porções)
– 8 fatias grossas de pão duro (cerca de 3 cm)
– 400 ml de vinho tinto jovem e suave
– 150 g de açúcar
– 1 pau de canela
– Casca de 1 limão
– 3 ovos
– Óleo vegetal para fritar
Para a calda:
– 200 g de açúcar
– 250 ml de água
– 1 pau de canela
– 1 tira de casca de limão
Preparação
- Num pequeno tacho, aqueça suavemente o vinho com os 150 g de açúcar, a casca de limão e o pau de canela, apenas até o açúcar dissolver. Não deixe ferver, basta aquecer.
2. Coloque os ovos batidos numa taça larga e rasa.
3. Passe cada fatia pela mistura de vinho morno até ficar bem embebida, mas sem se desfazer (cerca de 10 a 12 segundos de cada lado). Deixe escorrer o excesso.
4. De seguida, mergulhe as fatias embebidas em vinho nos ovos batidos.
5. Frite em óleo quente mas não demasiado forte, 2 a 3 minutos de cada lado, até ficarem douradas. O miolo pode ganhar um tom avermelhado devido ao vinho, o que é perfeitamente normal. Escorra bem.
6. Leve ao lume a água, o açúcar, a casca de limão e o pau de canela, deixando ferver em lume brando durante 8 a 10 minutos, até obter uma calda ligeiramente espessa.
7. Disponha as rabanadas fritas num prato fundo e regue-as com a calda quente. Deixe repousar por pelo menos 30 minutos para que amoleçam e absorvam todo o sabor.
Onde comer rabanadas em Lisboa
Encontrar rabanadas em Lisboa fora do mês de dezembro não é muito comum, mas também não é impossível. Tradicionalmente, as pastelarias e confeitarias mais clássicas só as fazem em dezembro ou, com alguma sorte, já a partir de novembro. São as versões tradicionais, geralmente servidas frias, muitas vezes dispostas em tabuleiros de metal, polvilhadas com açúcar e canela ou repousadas numa camada fina de calda.
Nos últimos anos, porém, Lisboa desenvolveu uma pequena mas crescente devoção às rabanadas durante todo o ano, impulsionada em parte por chefs que redescobriram o doce e o levaram para territórios mais contemporâneos. Esse movimento chegou mesmo a inspirar a criação da Confraria da Rabanada (que partilha receitas curiosas no Instagram), uma irmandade dedicada a celebrar e preservar este doce, sinal de que as rabanadas deixaram de estar confinadas à nostalgia natalícia. Por isso, não é raro encontrá-las em ementas noutras alturas do ano, embora muitas vezes em versões elevadas, apresentadas como sobremesas de autor em alguns dos melhores restaurantes de cozinha portuguesa contemporânea. Estas versões de fine dining podem ser deliciosas, sem dúvida, mas não são as rabanadas rústicas e caseiras às quais dedicamos este artigo.

Imagem cortesia de Time Out Lisboa
Se o que procura é o verdadeiro sabor do Natal português, então as versões tradicionais são as que vale a pena procurar. Eis alguns dos melhores lugares para comer rabanadas em Lisboa:
Confeitaria Nacional (na imagem acima)
📍Praça da Figueira 18B, 1100-241 Lisboa
https://confeitarianacional.com
Pastelaria Querubim
📍Alameda Q.ta de Santo António, 1600-675 Lisboa
Pastelaria Alcôa
📍Na Baixa-Chiado: Rua Garrett 37, 1200-203 Lisboa
📍No El Corte Inglés: Av. António Augusto de Aguiar 31, 1069-413 Lisboa
Pastelaria Califa
📍Estr. de Benfica 463, 1500-081 Lisboa
Pastelaria Versailles
📍No Saldanha: Av. da República 15A, 1050-185 Lisboa
📍Em Belém: Rua da Junqueira 528, 1300-598 Lisboa
Pastelaria Benard
📍Rua Garrett 104, 1200-205 Lisboa
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