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Projetos portugueses de gastronomia que vale a pena conhecer e seguir

Woman sorting nuts on a conveyor belt in a factory, wearing a cap and apron.

 

Uma das primeiras coisas que qualquer pessoa nota ao visitar Portugal é que levamos a comida muito a sério. Não de uma forma pretensiosa ou sofisticada (embora haja muitos restaurantes de fine dining que valem a pena explorar em Lisboa e fora da capital), mas no sentido em que, aqui, a comida está ligada a tudo. Em Portugal, a comida está associada à família, às memórias, ao trabalho, às migrações, ao clima e a muito mais. A comida tem muito que ver com a tradição mas, hoje em dia, a tradição já não a consegue definir por completo.

Para além dos contextos mais tradicionais, a história contemporânea da gastronomia portuguesa também se escreve em lugares de que a maioria dos visitantes nunca ouve falar. Estamos a falar de cooperativas rurais que tentam reverter décadas de degradação dos solos, ou de cozinhas urbanas onde chefs repensam o que pode realmente ser um menu zero desperdício. Também em salas de aula, em telhados e hortas comunitárias onde a comida se transforma numa ferramenta de educação e ativismo. Alguns destes projetos chegam a ter cobertura mediática, mas a maioria continua praticamente desconhecida, mesmo entre os locais.

Reunimos uma lista de projetos ligados à alimentação que achamos que mais pessoas deviam conhecer, porque estão a contribuir para moldar o mundo da comida no nosso país e, acima de tudo, a forma como percebemos de onde vem aquilo que comemos, ou o que poderá vir a ser a alimentação no futuro. O trabalho que desenvolvem foca-se em perceber como a cultura e a comida se cruzam com a vida real e, se se interessa e importa com a alimentação, acreditamos que estes projetos têm relevância quer viva em Portugal ou esteja apenas de visita.

Imagem de capa cortesia de Projeto Matéria

 

Projeto Matéria

Man in traditional straw cloak and flat cap holding a stick in a hilly landscape.Imagem cortesia de Projeto Matéria 

 

O Projeto Matéria foi lançado pelo chef João Rodrigues, que na altura era chef executivo do restaurante Feitoria, em Lisboa, distinguido com uma estrela Michelin, e que hoje é responsável pelo restaurante Canalha, também na capital, e pelo Canalha na Comporta. A inspiração para este projeto nasceu de uma pergunta simples que começou a incomodar o chef: de onde vinha realmente a comida que estava a cozinhar? Não num sentido genérico, de distribuidor para a cozinha, mas de uma forma mais real e orgânica, por vezes até literalmente de carne e osso. Ao cozinhar pratos elaborados todos os dias, não deixava de se interrogar sobre quem tinha plantado as leguminosas que utilizava, quem tinha criado os animais para a carne ou até quem teria fumado o chouriço que chegava à sua cozinha. Quanto mais cozinhava ao mais alto nível, mais desconectado se sentia dos ingredientes que deveriam estar no centro do seu trabalho. Foi então que pegou no carro, juntamente com a sua parceira Vânia Rodrigues, que é também uma figura essencial do projeto, ainda que muitas vezes nos bastidores. Assim começaram a percorrer Portugal para conhecer as pessoas por detrás dos ingredientes que o chef usava.

Foram encontrando pessoas que ainda trabalhavam a terra à moda antiga. Não porque isso tivesse voltado a estar na moda ou por ser sustentável, mas porque nunca deixaram de o fazer dessa forma. Falamos de pescadores, pastores, queijeiros, produtores de mel, moleiros, agricultores e fermentadores, muitas vezes a trabalhar sozinhos, por vezes com dificuldade em sobreviver e muito raramente com qualquer visibilidade. Não eram produtores que se encontrassem facilmente em feiras nas cidades ou que se seguissem no Instagram, já que muitos nem sequer presença online tinham. João e Vânia foram batendo a portas, falando com locais conhecedores e pouco a pouco foram construindo uma espécie de arquivo vivo. Esse arquivo tornou-se no Projeto Matéria, oficialmente lançado em 2017.

O Projeto Matéria é uma plataforma independente e sem fins lucrativos dedicada a mapear produtores portugueses responsáveis e mais sustentáveis. Cada produtor apresentado no site é alguém que João e Vânia conheceram pessoalmente e, por isso, não se trata de uma simples lista, mas de um trabalho que oferece contexto e profundidade humana. Estimam ter visitado mais de 170 produtores nos primeiros anos apenas para selecionar cerca de 80 que cumpriam os critérios definidos, não apenas em termos de qualidade, mas também de integridade. O resultado é uma base de dados altamente curada que privilegia o cuidado em vez da quantidade e as relações reais muito mais do que o marketing.

Uma das formas mais concretas de pôr em prática os valores do Projeto Matéria foi a mudança na forma como o Feitoria passou a abastecer-se. João começou a trabalhar diretamente com os produtores apresentados no projeto e integrou-os na cadeia de fornecimento do restaurante. Com o tempo, o restaurante passou a obter quase 90% dos ingredientes dentro de Portugal, a maioria diretamente dos produtores do Projeto Matéria. Para o chef, e a sua equipa, isto tornou-se uma forma de ativismo. Os ingredientes deixaram assim de ser anónimos e os clientes podiam saber não apenas o que estavam a comer, mas quem o tinha produzido, como e porquê. O Projeto Matéria acabou por influenciar também outros chefs de topo em Portugal, que começaram a traçar as suas próprias cadeias de fornecimento e a dar crédito aos pequenos produtores. Em muitos aspetos, isto abriu um novo capítulo na conversa sobre a identidade da gastronomia portuguesa, mais inclusiva das vozes rurais.

O Projeto Matéria nunca foi apenas sobre alimentar clientes de restaurantes Michelin. O objetivo a longo prazo era reconectar o público em geral com as pessoas que tornam a comida possível, sobretudo num sistema cada vez mais industrializado e por isso distante. Durante a pandemia, quando os restaurantes mal funcionavam, João e Vânia sentiram necessidade de mudar a direção do projeto. Lançaram eventos ao ar livre onde os produtores podiam vir a Lisboa encontrar-se com o público, partilhar as suas histórias e vender diretamente os seus produtos. Estes encontros eram parte mercado e parte evento, quase como pequenos festivais gastronómicos que incentivavam conversas à volta da mesa. Para manter tudo o mais genuíno possível, não havia patrocínios nem grandes formalidades. O grande objetivo era sobretudo finalmente dar espaço aos produtores para falarem diretamente com quem consome os seus alimentos.

É esse sentido de acesso que distingue o Projeto Matéria. Não é um projeto académico, mas sim uma rede em evolução que procura genuinamente quebrar as barreiras entre quem produz e quem consome. E, sejamos claros, trata-se de um grande ato de amor do chef e da sua parceira, já que as viagens são normalmente autofinanciadas e o trabalho não é remunerado. O casal tem falado abertamente sobre o peso emocional do projeto e algumas das realidades que testemunharam, incluindo o isolamento rural, o cansaço nos olhos de produtores envelhecidos que não sabem se os filhos vão continuar o trabalho e a fragilidade de certos saberes alimentares que podem desaparecer sem que ninguém repare. Uma padeira idosa do interior das Beiras, por exemplo, só aceitou ser documentada se João prometesse levar um pão para casa e comê-lo com a família. Já não vendia comercialmente há anos, mas continuava a cozer diariamente por hábito. O seu forno, a massa, o tempo de fermentação… tudo estava prestes a desaparecer.

Estes momentos nem sempre chegam a ser publicados no site, mas moldam as bases do projeto. Atualmente, o Projeto Matéria procura trabalhar mais diretamente na educação, sobretudo junto de alunos mais jovens. O objetivo é usar o conhecimento recolhido para semear consciência desde cedo, abordando sistemas alimentares, sustentabilidade e, em termos gerais, o valor de saber de onde vem aquilo que comemos. Mas o caminho ainda é longo, já que o financiamento continua a ser um grande desafio. Ainda assim, as bases do projeto são sólidas. Tão sólidas que, de facto, João acabou por deixar o restaurante Feitoria para se dedicar integralmente ao Projeto Matéria durante algum tempo, antes de abrir o Canalha.

Para quem tem curiosidade em acompanhar como a plataforma continua a crescer, ainda que lentamente, vale a pena saber que as histórias são bilíngues, publicadas em português e em inglês. Além disso, são escritas com a sensibilidade de quem procura preservar não só os factos, como também as vozes com nuance das pessoas que o projeto coloca em destaque. Viver o Projeto Matéria em primeira mão pode ser mais difícil, já que os eventos presenciais são esporádicos e muitas vezes anunciados de forma inesperada. Mas, se tiver interesse em comida verdadeiramente local em Portugal, recomendamos começar por conhecer as pessoas que, na realidade, tornam tudo isto possível.

www.projectomateria.pt

 

Rota das Algas

Person examining seaweed at a rocky beach with ocean in background.Imagem cortesia de Rota das Algas via Instagram

 

A Rota das Algas é um projeto lançado pela chef Joana Duarte em setembro de 2023. Combina biologia marinha e cozinha com o objetivo de ensinar a identificar, colher e utilizar algas de forma segura e sustentável. Mais do que uma experiência curiosa de apanha ou de gastronomia, trata-se de compreender como este recurso pode vir a ter um papel essencial na alimentação do futuro.

Antes de ser chef, Joana formou-se e trabalhou como bióloga marinha. Tem um mestrado em Oceanografia e passou anos a investigar sardinhas e biqueirões no IPMA, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Com o tempo, o foco deixou de estar no peixe e passou para o potencial ainda pouco explorado das macroalgas comestíveis, que são organismos que não são nem vegetais nem animais, pertencendo a um reino próprio. Não precisam de solo, nem de água doce, e regeneram-se rapidamente, o que as torna numa das fontes de alimento mais sustentáveis do planeta.

As atividades da Rota das Algas acontecem no terreno, em zonas rochosas da costa portuguesa durante a maré baixa. Joana guia grupos pequenos, até cinco pessoas, em caminhadas de cerca de três horas que funcionam como verdadeiras salas de aula ao ar livre. Os participantes aprendem a reconhecer espécies como ulva (alface-do-mar), codium (chorão-do-mar), palmaria palmata ou laminaria ochroleuca. Numa só saída é comum encontrar uma dúzia de algas comestíveis diferentes, cada uma com sabor, textura e usos culinários próprios. Joana ensina a colher de forma responsável (o que se traduz em sempre cortar e nunca arrancar), e aborda também os temas menos românticos mas indispensáveis, como a segurança alimentar, a legislação costeira, os ciclos das marés e o impacto das alterações climáticas nas zonas intertidais, isto é, as áreas costeiras que ficam submersas durante a maré alta e expostas durante a maré baixa.

Existe ainda uma versão infantil, a Rota das Algas Kids, dirigida a crianças dos 6 aos 12 anos, em que as explicações científicas são transformadas em jogos e atividades lúdicas. Joana tem colaborado também em visitas a escolas e ações de educação ambiental, porque acredita que a literacia alimentar deve começar cedo e de forma prática.

Outro pilar do projeto são as Kitchen Sessions, momentos em que as algas colhidas são levadas para a cozinha. Ali, os participantes aprendem a limpar, conservar e cozinhar com algas, preparando pratos simples como ovos mexidos enriquecidos com algas, caldos cheios de umami ou manteiga aromatizada. Por vezes, os encontros terminam com pequenos presentes, como pão com algas feito por parceiros do projeto ou manteigas artesanais preparadas pela própria Joana.

A Rota das Algas não se limita ao público em geral. Joana tem trabalhado com chefs em todo o país para os incentivar a incorporar algas nos seus menus, não como elemento decorativo, mas como ingrediente central. Participa frequentemente em conferências gastronómicas e debates sobre sustentabilidade, defendendo as algas como parte realista e necessária do sistema alimentar.

Na cultura alimentar portuguesa, as algas não são totalmente novidade. Durante séculos foram usadas em caldos, na alimentação animal e até como fertilizante agrícola. Porém, raramente chegaram à mesa como parte da gastronomia do dia a dia, com algumas exceções, como as tortas de erva patinha, ainda hoje preparadas nos Açores quando o nori atlântico está em época. Hoje, começam a regressar ao prato. Ricas em iodo, cálcio e antioxidantes, com muita fibra e sabor umami, as algas podem ser combinadas com peixe, marisco, leguminosas ou até pratos vegetarianos. O trabalho de Joana está a contribuir para que este recurso volte a ter um lugar na cozinha contemporânea, tanto em restaurantes como em casa.

O percurso de Joana como cozinheira dá-lhe a credibilidade necessária para este projeto. Formou-se na Escola Hoffmann, em Barcelona, passou por cozinhas com estrelas Michelin, dirigiu o restaurante Tapisco com o chef Henrique Sá Pessoa até 2021, e atualmente colabora como consultora no Pão de Canela. Além disso, é formadora em várias escolas de hotelaria de Lisboa, Estoril e Setúbal, e já foi destacada por nós como uma das chefs que marcaram o panorama gastronómico lisboeta.

Para participar, basta estar atento ao Instagram da Rota das Algas. As caminhadas são anunciadas consoante a maré e o local, e por serem grupos pequenos esgotam rapidamente. Para quem visita Lisboa, as saídas da Ericeira são das mais acessíveis.

www.rotadasalgas.com

 

Kitchen Dates

Two smiling people in casual clothes standing in a modern kitchen with shelves and jars.Imagem cortesia de Kitchen Dates via Instagram

 

O Kitchen Dates começou no sítio mais improvável: a sala de um apartamento arrendado em Amesterdão. No início de 2017, muito antes de o termo zero waste se tornar parte do vocabulário dos restaurantes, Rui Catalão e Maria Antunes organizavam jantares intimistas em casa. À volta da mesa sentavam-se alguns desconhecidos, que partilhavam refeições feitas sem gerar lixo. Qualquer resto que não fosse aproveitado na cozinha transformava-se em composto e, antes disso, quase todos os elementos dos ingredientes eram reaproveitados para consumo. A cada jantar, iam encontrando respostas práticas para a pergunta que estava na base do projeto: “Pode uma cozinha funcionar sem produzir lixo?” Desde o primeiro momento, o Kitchen Dates mostrou que sim, que é possível cozinhas modernas operarem sem contribuir para a enorme quantidade de desperdício que caracteriza o sistema alimentar global.

Quando trouxeram o conceito de volta a Lisboa, deram-lhe ainda mais ousadia. Foi então que nasceu o primeiro restaurante totalmente zero waste em Portugal. Poderia ser comparado ao mediático Silo London, mas aqui o compromisso era ainda mais profundo, porque a cozinha era inteiramente baseada em vegetais, que sabemos serem mais sustentáveis, 100% com ingredientes locais, sazonais e de origem ética. No restaurante não havia sequer caixote do lixo. Todos os pratos, guardanapos e restos eram comidos, reutilizados ou compostados ali mesmo, através de um sistema que convertia resíduos em solo. Assim redefiniram a forma como Lisboa podia pensar refeições regenerativas, mostrando que sustentabilidade e gastronomia podiam caminhar lado a lado.

Com a chegada da pandemia, tudo mudou. As salas de jantar fecharam e as caixas de entrega de comida dominaram. Rui e Maria perceberam rapidamente que o modelo de entregas não era compatível com os seus valores. Mesmo usando embalagens compostáveis e bicicletas, sabiam que não estavam a promover a mudança sistémica em que acreditavam. Em vez de insistir num modelo que contrariava os princípios do projeto, decidiram fechar o restaurante e transformar o Kitchen Dates numa plataforma de literacia alimentar, mais ampla e duradoura do que um simples espaço físico.

Hoje, o Kitchen Dates existe como um projeto multidimensional dedicado a amplificar a literacia alimentar. Grande parte do trabalho traduz-se em eventos, consultoria, demonstrações de cozinha e palestras adaptadas a diferentes públicos, incluindo famílias, escolas, empresas ou instituições. As sessões são muito práticas e, em vez de teoria, apresentam soluções concretas. Imagine uma sala cheia de recipientes reutilizáveis, atividades interativas e exemplos reais que qualquer família pode aplicar em casa. Ensinam a comprar de forma inteligente, a armazenar alimentos com segurança, a pensar criativamente sobre conservação e, acima de tudo, a compreender toda a cadeia de abastecimento de uma forma que parece urgente mas ao mesmo tempo viável.

Uma das ferramentas mais fortes do projeto é o podcast Próprio para Consumo. Aqui, Rui e Maria não evitam temas difíceis como a crise alimentar e climática, mas exploram-nos de forma acessível, com histórias que ajudam a perceber questões complexas sem soar a sermão. Mantêm um estilo documental envolvente, com desenho sonoro cuidado, que mistura entrevistas e sons de ambiente, colocando o ouvinte no centro da ação. Os episódios abordam desde temas amplos como cadeias globais de abastecimento e justiça alimentar até questões muito próximas do dia a dia. Um dos primeiros programas pegou no pão, um alimento básico, para mostrar como a degradação dos solos e os mercados globais de cereais afetam diretamente o que temos no prato. Outro episódio explora a produção industrial de pão e o impacto dos alimentos ultraprocessados nos hábitos e na saúde. Mais recentemente, já na segunda temporada, exploraram temas como a alimentação infantil e o que é servido nas cantinas escolares. Embora o podcast seja em português, as ideias são relevantes num contexto global, porque falam de sobreprodução, equidade alimentar, custos ambientais de alimentos de consumo massivo e da forma como a cultura se reflete nas refeições de todos os dias.

O projeto inclui também uma newsletter que alterna entre dicas práticas e reflexões mais alargadas. Ali falam dos custos escondidos dos nossos hábitos de compra, de oportunidades desperdiçadas na cozinha doméstica e de casos concretos que provam como pequenas mudanças podem ter grande impacto. Cada edição navega entre a escala macro (políticas, sistemas globais) e o micro (como aproveitar a ramagem da cenoura), sempre com clareza e proximidade.

Apesar de terem fechado o restaurante, Rui e Maria nunca deixaram de cozinhar. O Kitchen Dates continua a marcar presença em jantares pop-up, festivais low waste e encontros de sustentabilidade como a Cidade do Zero. Estes não são eventos casuais de catering, mas experiências intencionais, nas quais se pode participar acompanhando a agenda através do Instagram do projeto.

Mais do que cozinheiros, Rui e Maria assumem-se como ativistas e educadores. E é isso que torna o Kitchen Dates tão relevante, porque juntos conseguem trazer para a discussão pública temas habitualmente tratados em contextos académicos ou técnicos, traduzindo-os numa linguagem clara e próxima. Mostram as ineficiências e injustiças do sistema alimentar, defendem que os desafios de Portugal são, afinal, desafios globais e insistem que as soluções começam em escolhas simples do quotidiano, desde o que compramos até à forma como cozinhamos e reaproveitamos.

https://kitchendates.pt

 

UpFarming

Two people holding fresh greens in a vertical garden with leafy plants.Imagem cortesia de UpFarming via Instagram

 

No bairro de Alvalade, em Lisboa, um jardim vertical feito de quatro torres giratórias produz cerca de 400 quilos de alimentos frescos todos os meses. Em fileiras crescem alfaces, couves, manjericão, hortelã, salsa, coentros, morangos e até flores comestíveis, tudo sem recurso a solo, alimentado apenas por uma fina névoa de água e nutrientes. Grande parte desta colheita chega às cozinhas locais, através de refeições comunitárias e oficinas. É um exemplo claro daquilo que a UpFarming faz melhor, ou seja, transformar espaços improváveis em locais de produção, aproximando as pessoas dos alimentos que consomem.

A associação sem fins lucrativos foi fundada pelo arquiteto Tiago Sá Gomes e pelo consultor de sustentabilidade Bruno Lacey, e o primeiro projeto arrancou em 2021, em parceria com o Museu de Lisboa, no Campo Grande. A partir daí expandiu-se para escolas, hospitais, bairros e até prisões, mostrando que a agricultura vertical pode ser muito mais do que um conceito futurista. Quando aplicada de forma correta, pode inclusive ser uma ferramenta social.

O projeto desenvolvido numa prisão é um dos exemplos mais claros deste impacto. Dentro do estabelecimento, quarenta torres verticais produzem quase 1800 plantas todos os meses. O sistema fornece alfaces e ervas aromáticas diretamente para a cozinha da instituição, melhorando a qualidade das refeições. Morangos e acelgas dão variedade à ementa, algo que dificilmente surgiria num contexto prisional, e o excedente é doado a famílias locais mais carenciadas. A gestão é feita em conjunto por reclusos e guardas, criando uma rotina produtiva mas, acima de tudo, com uma dimensão de reabilitação. Ao aprender a cultivar, os reclusos adquirem competências práticas que podem ser úteis no futuro, ao mesmo tempo que contribuem de forma concreta para a comunidade.

Nas escolas, o foco é a educação e a literacia alimentar. As torres instaladas nos recreios e pátios são plantadas com ervas como hortelã, manjericão ou salsa, mas também com outros verdes de fácil cultivo, como a couve ou a rúcula. Os professores utilizam-nas como quadros vivos e as aulas de ciências acontecem entre plantas. Os alunos são incentivados a colher e provar o que cultivam e, em algumas escolas, a alface segue diretamente para a cantina, dando às crianças a satisfação de ver a sua própria produção transformada em salada nos tabuleiros. Para além da nutrição, estes jardins tornam evidente que os alimentos não começam embalados em plástico, mas sim numa pequena planta que exige cuidado.

Nos hospitais, o modelo foi adotado com objetivos distintos. Aqui, os jardins são usados como espaços terapêuticos, oferecendo alívio sensorial em ambientes que muitas vezes são estéreis. Doentes participam nos cuidados das plantas, cultivando ervas como alecrim ou tomilho, e as pequenas colheitas são aproveitadas na cozinha em sopas ou infusões. O ato de cultivar faz parte do processo de cura, ao mesmo tempo que os produtos frescos ajudam a reduzir a dependência de fornecedores industriais.

Nos bairros, como em Alvalade, os jardins verticais têm sobretudo a ver com a comunidade. Os moradores são convidados a participar em sessões para plantar, colher e cozinhar. Nas oficinas, couves ou espinafres das torres transformam-se em pratos simples e nutritivos, e os morangos fazem as delícias das crianças, transformando o espaço num ponto de encontro natural para famílias. Os alimentos circulam dentro da comunidade, reforçando a ideia de que a comida cultivada em espaço público pertence a todos.

A tecnologia utilizada pela UpFarming é a aeroponia vertical. As plantas crescem sem solo, com as raízes expostas ao ar e alimentadas por uma névoa de água enriquecida com nutrientes. As torres giram lentamente, garantindo que cada planta recebe luz e hidratação de forma uniforme. O sistema consome até 90% menos água do que a agricultura tradicional, dispensa pesticidas químicos e é suficientemente compacto para caber em locais onde um jardim convencional seria impossível. Cada torre pode acolher dezenas de plantas em simultâneo, garantindo altos volumes de produção com recursos mínimos.

O que distingue a UpFarming é o facto de não se limitar a instalar as torres e ir embora. A equipa envolve-se no tecido social de cada local, formando as pessoas para gerirem os jardins e criando redes que mantêm os alimentos em circulação. Numa prisão, isso significa reabilitação. Numa escola, educação alimentar. Num hospital, terapia. Num bairro, participação. Em todos estes contextos, o resultado é comida mais fresca, saudável e acessível, mas também uma ligação mais forte entre as pessoas e o que comem.

https://upfarming.org

 

ProVeg Portugal

Person gives presentation to seated audience in classroom, with projection and ProVeg banner visible.Imagem cortesia de ProVeg Portugal

 

A ProVeg Portugal nasceu da AVP, a Associação Vegetariana Portuguesa. Estão por detrás de uma das medidas mais relevantes da política alimentar recente em Portugal. Em 2017, impulsionaram a aprovação da lei que tornou obrigatória a existência de uma opção totalmente vegetal em todas as cantinas públicas, incluindo escolas, hospitais, prisões, universidades e outras instituições do Estado. A AVP reuniu mais de 15 mil assinaturas, interveio no parlamento e ajudou a criar a lei que entrou em vigor em junho desse ano. Embora a implementação tenha sido desigual em alguns contextos, a base legal ficou estabelecida e Portugal passou a ser frequentemente citado no estrangeiro como caso de estudo para países que exploram iniciativas semelhantes.

Desde 2024, a equipa atua sob a chancela da ProVeg, mantendo o ADN da AVP: investigação, educação e trabalho político para orientar consumidores e instituições para refeições mais vegetais, por razões ambientais, económicas e nutricionais. A organização define-se como uma associação sem fins lucrativos que utiliza advocacia, parcerias e ferramentas práticas para reduzir a dependência de proteína animal e ampliar o acesso a comida vegetal equilibrada.

O seu principal programa é o Prato Sustentável, criado para ajudar cozinhas coletivas, desde municípios a universidades e hospitais, a servirem mais e melhores refeições de base vegetal. Para além de diretrizes, o projeto inclui programas de e-learning, formação de equipas de cozinha, oficinas práticas, receituários-padrão (mais de 100 pratos nutricionalmente equilibrados) e ferramentas de monitorização para avaliar o impacto real. Só em 2024, as escolas parceiras serviram mais de 150 mil refeições vegetais em mais de 60 escolas de sete municípios, enquanto as parcerias hospitalares foram expandidas e melhoradas. Em instituições que adotaram uma refeição vegetal semanal como padrão, análises independentes mostraram uma redução significativa da pegada carbónica de cada prato, sem aumento de desperdício no prato, contrariando a ideia de que refeições vegetarianas, sobretudo entre crianças, seriam frequentemente rejeitadas.

Além disso, a ProVeg Portugal organiza oficinas e cursos de cozinha em espaços próprios no Porto e em outras cozinhas espalhadas pelo país, como em supermercados ou centros comunitários. Estas iniciativas destinam-se tanto a famílias como a profissionais do setor alimentar e ensinam competências práticas, como cozinhar leguminosas, planear refeições vegetais acessíveis, conservar alimentos para reduzir desperdício e adaptar pratos típicos portugueses sem perder sabor.

No campo da política pública, a ProVeg Portugal coordena o programa Proteína Verde, uma plataforma com 15 propostas que apelam ao Estado para apoiar as leguminosas e outras proteínas vegetais, através de medidas de apoio à produção agrícola, normas de compra pública, educação e investigação. Este trabalho tem gerado coligações com associações ambientais e levado a organização a participar em debates nacionais sobre energia e clima. O argumento é simples: se Portugal quiser maior resiliência climática e orçamentos públicos mais saudáveis, precisa de uma estratégia proteica centrada no feijão, grão-de-bico, fava, tremoço e lentilhas, alimentos que, de todos modos, já fazem parte do património gastronómico português há séculos.

A organização também continua a produzir recursos para o consumidor comum. O portal da antiga AVP mantém-se como VeggieKit, com mais de 200 receitas fáceis e guias para quem começa. O blogue ajuda a desmistificar padrões alimentares vegetais, nutrição e substituições práticas, numa linguagem acessível. Já as redes sociais tratam temas como a produção de leguminosas em Portugal ou receitas rápidas com poucos ingredientes. É conteúdo pensado para que a mudança diária pareça alcançável. Se procura versões vegetais de pratos portugueses típicos, é um bom ponto de partida.

A ProVeg Portugal trabalha para promover uma alimentação melhor, com menor impacto ambiental e menos barreiras para quem quer escolher um prato vegetal. Se quiser acompanhar o que fazem durante a sua estadia em Portugal, consulte o Instagram da organização para estar a par de eventos, ou explore alguns dos restaurantes veganos que recomendam em Lisboa e noutras regiões do país.

https://proveg.org/pt

 

Se este tema lhe despertou curiosidade, poderá também gostar do nosso artigo sobre outros projetos sociais ligados à comida em Lisboa. Para continuar a acompanhar histórias como esta, subscreva a newsletter da Taste of Lisboa e fique a saber mais sobre a cultura gastronómica portuguesa.

 

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