Pratos portugueses em vias de extinção

Em Portugal, existe um menu quase “secreto” de alimentos que estão aos poucos a desaparecer das nossas mesas. Estamos a falar principalmente de ingredientes e receitas que contam a história do passado de Portugal, uma época em que as pessoas aproveitavam ao máximo o que tinham, criando algo especial por necessidade. Na Taste of Lisboa, temos explorado estas comidas que estão a desaparecer, e estamos aqui para partilhar por que ainda vale a pena procurá-las.
Muitos destes tesouros culinários estão a desaparecer por razões como a poluição e as alterações climáticas que afetam as populações de peixes, ou porque as receitas são complexas e as pessoas hoje em dia simplesmente optam frequentemente por refeições mais rápidas. Outras estão ligadas a modos de vida tradicionais, como o uso de todas as partes de um animal, práticas que em grande parte passaram da cozinha doméstica para os matadouros e talhos comerciais. Além disso, sejamos honestos, alguns destes pratos são um gosto adquirido que até mesmo os nativos, especialmente as gerações mais jovens, muitas vezes evitam.
Apesar disso, estes alimentos são uma experiência obrigatória para qualquer pessoa que realmente queira experienciar o espectro completo da cultura gastronómica portuguesa. Falamos de produtos e confecções que certamente não costumam fazer parte das rotas mais turísticas. Inclusive, muitas destas comidas nem são conhecidas por alguns locais, especialmente pelos mais jovens. Mas se está a visitar Portugal, ou mesmo se é local e aventureiro, vale a pena explorar um pouco e tentar encontrar estas raras iguarias, já que mais do que uma experiência gastronómica que se fica pelo paladar, elas permitem conectar-se com a história de Portugal e o seu espírito resiliente e inventivo na cozinha.
Portanto, se as suas viagens o levarem por este belo país, ou mesmo se estiver apenas a explorar a zona de Lisboa, mantenha os olhos abertos e as papilas gustativas prontas. Pode ser que venha a descobrir algo espetacularmente incomum.
Imagem de capa cortesia de Expresso
Cuscos Transmontanos
Imagem cortesia de Sapo Lifestyle
Os cuscos, um prato que muitas vezes não é imediatamente associado a Portugal, têm as suas raízes nas tradições culinárias do Norte de África, especificamente da região do Magrebe, onde eram um alimento do dia a dia entre as tribos berberes. Semelhante ao que é conhecido globalmente como cuscuz, a viagem dos cuscos até à Península Ibérica é atribuída às conquistas mouriscas, introduzindo uma diversidade de práticas culinárias na região. Surpreendentemente, os cuscos encontraram um reduto particular na região norte de Portugal de Trás-os-Montes, uma área onde a influência mourisca foi historicamente mínima. Acredita-se que as comunidades judaicas, que se estabeleceram nestas áreas remotas e que herdaram muitas das tradições culinárias andaluzas e norte-africanas, foram cruciais na integração dos cuscos na dieta local.
Esta ligação a terras e culturas distantes fala de como, frequentemente, através da história e do globo, as culturas estão conectadas e isso acaba por se sentir nas pequenas coisas do dia-a-dia. Ao longo dos séculos, os cuscos foram uma parte significativa da gastronomia regional nos municípios de Bragança e Vinhais. Por estes lados, os cuscos ainda são tradicionalmente feitos a partir do trigo Barbela, um cereal abundantemente cultivado na região, que é transformado num produto que pode ser armazenado durante muitos meses, proporcionando uma alternativa sustentável a alimentos historicamente mais caros como a massa e o arroz.
A produção de cuscos sobreviveu até agora graças às habilidades artesanais transmitidas através das gerações, principalmente pelas mulheres desta região. O processo começa com a colocação de farinha num cocho de madeira tradicional, conhecido como masseira. A água é gentilmente polvilhada sobre a farinha, um processo facilitado por uma vassoura feita de giesta local ou um gentil agitar dos dedos, iniciando a formação de pequenos grânulos. Estes grânulos são então cuidadosamente torcidos à mão para garantir um certo nível de consistência. Este passo intensivo é muitas vezes um esforço comunitário, ajudando não só a aliviar a carga de trabalhos, mas também a fomentar a interação social. Após a modelagem, os cuscos são peneirados para garantir um tamanho relativamente uniforme e depois espalhados num pano de linho para secar. Dependendo do tempo, isso pode levar algumas horas ao sol ou durante a noite se acabarem por ficar no interior. O passo final envolve cozinhar os cuscos ao vapor.
Se está intrigado e gostaria de experimentar cuscos em Lisboa, ocasionalmente aparecem nos menus de degustação de restaurantes de alta cozinha como o LOCO (Rua Navegantes 53B) do chef Alexandre Silva e, numa versão vegetariana, no Encanto (Largo de São Carlos 10) do chef Avillez. Os menus destes restaurantes são sazonais, portanto comer cuscos não é garantido. Se estiver aberto a comprá-los e cozinhá-los em casa, também pode espreitar lojas especializadas como O Pitéu Transmontano (Largo Dona Estefânia 6A) ou comprá-los online a qualquer altura do ano.
Maranho
Imagem cortesia de RTP
O Maranho é uma joia culinária da Sertã, que faz parte do distrito de Castelo Branco na província da Beira Baixa no interior centro de Portugal. Originalmente servido em casamentos e festividades da aldeia, este prato evoluiu de uma rara iguaria festiva para uma especialidade procurada, compelindo tanto locais como entusiastas da comida a procurarem-no. Por vezes, o maranho é visto como uma das “comidas mais estranhas de Portugal”. Este prato único é um testemunho da tradição portuguesa de utilizar cada parte do animal, demonstrando uma engenhosidade culinária que é uma das bases das especialidades regionais portuguesas mais tradicionais.
Fazer maranho requer costurar delicadamente um estômago de cabra ou ovelha limpo e lavado (localmente conhecido como bandouga), e enchê-lo com um recheio bem temperado. Os ingredientes principais incluem carne de cabra ou ovelha finamente picada, arroz de grão curto da variedade local Carolino, e hortelã fresca, que são misturados com um pouco de bacon, fiambre, azeite e vinho branco. Algumas variações podem incluir chouriço, sumo de limão, pimenta ou piripiri, e alho, adicionando diferentes nuances de sabor. A mistura é deixada a marinar para que os sabores se desenvolvam, antes de ser adicionada ao arroz e colocada no estômago. Este saco é então enchido apenas três quartos para evitar que rebente durante o processo de cozedura, tipicamente cozido com um toque de hortelã para libertar todo o perfil de sabor e dar alguma frescura que contraste com a pesadez das carnes.
Apesar do seu rico sabor e significado cultural, o maranho continua relativamente pouco comum hoje devido à sua preparação intensiva e à escassez do seu ingrediente principal, a bandouga. A mudança da criação de animais em casa para talhos mais comerciais, bem como as preferências alimentares contemporâneas, certamente contribuíram para a sua raridade. Além disso, a habilidade e paciência necessárias para preparar o maranho são virtudes que estão a desvanecer-se no mundo culinário de hoje com um ritmo mais acelerado.
Felizmente, o estatuto de IGP (Indicação Geográfica Protegida) do maranho da Sertã desempenha um papel crucial na preservação deste tesouro culinário. Esta designação garante que o prato é confeccionado segundo os métodos de preparação tradicionais e apenas com ingredientes locais autênticos, protegendo o seu património e mantendo a sua presença na culinária portuguesa. Sem este estatuto protetor, o maranho poderia correr o risco de desaparecer por completo, levando consigo um pedaço da identidade gastronómica de Portugal.
Para quem procura experimentar este prato raro, a Sertã é o local de eleição, onde o maranho se tornou sinónimo da cultura gastronómica local. Aqui em Lisboa, pode ter sorte na Manteigaria Silva (Rua D. Antão de Almada 1C) ou no supermercado do grande armazém El Corte Inglês (Av. António Augusto de Aguiar 31), onde poderá ser capaz de comprar um maranho pré-feito. Se o comprar, simplesmente ferva-o em casa, e é ainda melhor se o fizer com um raminho de hortelã. O tempo necessário para cozinhá-lo é geralmente pelo menos 90 minutos e, depois de ter sido imerso em água a ferver, pode querer colocá-lo num forno pré-aquecido para assar um pouco, permitindo que a carne fique dourada para melhorar a textura. Como este é um produto que já contém carne e arroz, recomendamos saltear uns grelos e servi-los com o maranho fatiado.
Lampreia do Minho
Imagem cortesia de Visão
A lampreia é uma especialidade única, particularmente popular ao longo do rio Minho, no norte de Portugal. Este ciclostoma pré-histórico navega pelas águas da terra há mais de 300 milhões de anos, sendo um verdadeiro fóssil vivo. Nascida no rio, a lampreia migra para o mar apenas para regressar ao seu local de nascimento em água doce para desovar. A sua captura, seguindo ainda em grande parte métodos tradicionais, utiliza estruturas de pesca antigas conhecidas localmente como pesqueiras, que agora são reconhecidas como Património Cultural Imaterial Nacional. Embora existam mais de 900 pesqueiras, hoje em dia menos de 200 permanecem ativas. O rio Minho, que se estende por cerca de 80 quilómetros, possui zonas e métodos de pesca distintos, influenciados pelas marés locais e condições. As redes tradicionais ainda são preferidas, pois acredita-se que mantêm a qualidade do peixe melhor após um dia ou dois em armazenamento, melhorando a sua textura e sabor.
A época da lampreia, ansiosamente aguardada pelos entusiastas da comida portuguesa, estende-se de janeiro a abril. Este período marca um tempo festivo nas regiões do norte de Portugal, onde a lampreia é tradicionalmente acompanhada com vinho verde tinto. Os locais desenvolveram várias receitas ao longo dos anos, apresentando este peixe em pratos como arroz de lampreia e lampreia à Bordalesa, ou preparações menos comuns como açorda e escabeche.
Apesar da sua presença de longa data na gastronomia e cultura portuguesas, a lampreia é cada vez mais rara. Esta escassez é sobretudo atribuída à destruição do habitat, nomeadamente à construção de barragens que interrompem as suas rotas migratórias, e à poluição. Estes fatores não só ameaçam a existência da lampreia, mas também as tradições culturais e as economias locais que dependem da sua captura sazonal.
Reconhecida como um recurso endógeno de elevado valor gastronómico, a lampreia do Rio Minho é celebrada através de várias iniciativas destinadas a promover os ativos naturais e culturais do Vale do Minho. Estes esforços fazem parte de estratégias mais amplas para gerir os recursos naturais de forma sustentável, reforçando o tecido socioeconómico das áreas rurais e apoiando a conservação da biodiversidade. Março acolhe o evento anual Lampreia do Rio Minho – Um Prato de Excelência, envolvendo várias entidades locais e exibindo a excelência gastronómica da lampreia em restaurantes por todo o Vale do Minho. Muitos restaurantes em cidades próximas ao rio Minho, como Vila Nova de Cerveira, Valença do Minho, Monção e Melgaço, alargam os seus menus durante este tempo para incluir pratos tradicionais de lampreia, o chamado “diamante do rio”.
Apesar de ser uma parte crítica do património local, a lampreia enfrenta a ameaça de extinção, estando na Lista Vermelha de vertebrados criticamente em perigo de Portugal desde 2005. Os esforços continuam para promover práticas de pesca sustentáveis e consciencialização ambiental, com esperanças de prevenir o desaparecimento desta espécie e das tradições culinárias com ela relacionadas.
Para aqueles em Lisboa que desejem experienciar esta iguaria sazonal, vários restaurantes servem pratos de lampreia até abril. O Solar dos Presuntos (Rua das Portas de Santo Antão 150), o Solar dos Nunes (Rua dos Lusíadas 68), a Adega de Ti Matilde (Rua da Beneficência 77) e os Os Courenses (Rua José Duro 27D – na foto acima) estão entre os melhores estabelecimentos onde se pode desfrutar desta rara iguaria.
Enguias
Imagem cortesia de New in Setúbal
As enguias, uma apreciada iguaria em Portugal, são particularmente populares em regiões como o estuário do rio Tejo ou a Ria de Aveiro. Tradicionalmente cozinhadas de várias formas, como fritas, grelhadas, em estufados ou em cataplana, as enguias são uma das estrelas da gastronomia regional e, como uma iguaria sazonal, são celebradas através de numerosos festivais gastronómicos em Portugal que são organizados para promovê-las como produtos a estimar, mas também para reunir a comunidade num ambiente festivo.
Historicamente, as enguias eram uma opção acessível para muitos, mas à medida que a procura aumentou, o preço também aumentou, refletindo a sua raridade e prestígio culinário crescentes. Em áreas como a Lagoa de Santo André, as enguias tornaram-se um símbolo orgulhoso da culinária local, servidas proeminentemente no festival gastronómico anual que agora está na sua nona edição. O festival destaca receitas tradicionais e técnicas culinárias locais, apresentando as enguias como um ingrediente chave no rico património gastronómico da região.
No entanto, este tesouro culinário está sob ameaça. As enguias estão cada vez mais reconhecidas como uma espécie em risco de extinção devido à sobrepesca, perda de habitat e mudanças ambientais que afetam o seu ciclo de vida complexo. As enguias nascem no distante Mar dos Sargaços, um mar no Oceano Atlântico que é o único mar sem uma fronteira terrestre, e passam por uma notável jornada através do Atlântico. Guiadas pela Corrente do Golfo até as costas da Europa, onde migram para rios como o Tejo em habitats de água doce. Após viverem até duas décadas nestes ambientes de água doce, regressam ao Mar dos Sargaços para desovar e morrer, completando o seu ciclo de vida.
Conservacionistas e cientistas argumentam que a prática culinária de consumir enguias precisa ser reconsiderada para prevenir o seu desaparecimento. Com as enguias a fazer parte na lista vermelha de espécies ameaçadas, o dilema ético espelha o enfrentado por outras iguarias derivadas de espécies em perigo. Surge a questão se a tradição pode ser sustentada sem comprometer a sobrevivência da espécie, e as discussões estão em curso sobre a redução do consumo de enguias para permitir a recuperação das suas populações.
Para quem procurar experienciar esta especialidade gastronómica perto de Lisboa, as opções incluem fazer uma escapadinha de um dia ao Montijo para visitar a Casa das Enguias (Rua Guarda Nacional Republicana 30), muitas vezes referida como “o templo das enguias”. No centro da cidade de Lisboa, restaurantes como A Valenciana (Rua Marquês de Fronteira 157) costumam servir enguias durante as épocas de abundância. Além disso, festivais gastronómicos dedicados às enguias, como o Festival Gastronómico da Enguia na Murtosa, o Festival da Enguia da Lagoa de Santo André em Santiago do Cacém, ou o Mês da Enguia em Salvaterra de Magos, oferecem aos visitantes uma oportunidade única de provar vários pratos tradicionais de enguia e apreciar esta especialidade cada vez mais rara no seu contexto tradicional. Se devemos ou não comer enguias, fica ao critério de cada um.
Doce de escorcioneira
Imagem cortesia de Horadabuxa-Gastronomia
A escorcioneira é uma planta que está historicamente ligada ao passado culinário de Évora, uma cidade na região do Alentejo, em Portugal. Esta planta rústica e espontânea prospera particularmente bem em solos calcários e foi parte da dieta local durante séculos, utilizada tanto em pratos salgados como doces, como documentado em livros de culinária portugueses do século XVII. As suas raízes escuras, longas e carnudas eram tradicionalmente utilizadas na medicina popular e como um alimento do dia a dia nas cozinhas de Évora, onde eram cristalizadas para fazer doces que eram apreciados por crianças e adultos.
Tradicionalmente, a escorcioneira era vendida por intermediários a pequenas oficinas artesanais que produziam doces cristalizados conhecidos como doces de escorcioneira. Esta iguaria requeria cortar as raízes da planta em cubos, que eram depois cozidos com açúcar e raspas de citrinos até cristalizarem. A mistura era mexida fora do lume até secar e endurecer, para ser depois quebrada em pedaços e embrulhada em papel. Este doce foi outrora o produto mais famoso de Évora, e acreditava-se mesmo ter sido nomeado após a palavra “excursionista” devido ao elevado número de visitantes que vinham à cidade para o comprar. Há cerca de 50 anos, esta confeção desapareceu, provavelmente devido à modernização das práticas agrícolas, mudanças de interesses comerciais e a concorrência de outros doces embalados comercialmente.
Nos últimos anos, tem havido um ressurgimento do interesse neste doce tradicional. A SlowFood Alentejo está por detrás dos esforços para recuperar a receita e reintroduzir estes doces no mercado, mesmo que em contextos específicos. O cultivo em pequena escala foi retomado em lugares como Monte do Trigo e Portel, áreas no Alentejo central que fazem parte do alcance histórico da planta. Este ressurgimento faz parte de um movimento mais amplo para preservar e celebrar o património culinário da região, que também inclui outras receitas esquecidas que utilizavam a escorcioneira.
A planta está quase extinta hoje, mas os esforços de revivificação trouxeram de volta um pedaço da identidade gastronómica de Évora. Para quem estiver interessado em provar este doce raro e histórico, visitar Évora durante os festivais gastronómicos pode representar uma boa oportunidade. Para quem em Lisboa quiser explorar os sabores da escorcioneira, uma viagem de um dia a Évora poderia ser uma opção, embora este doce seja tão raro que certamente não há garantias. Se encontrar o doce de escorcioneira e tiver a oportunidade de o provar, tire uma foto e conte-nos tudo no Instagram.
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